Título: De lava-jato a cemitério, infância explorada
Autor: Duarte, Alessandra; Benevides, Carolina
Fonte: O Globo, 07/11/2012, País, p. 12

Programa federal que combate o trabalho infantil esbarra em falhas de execução pelos municípios

Mercadores da miséria

Mãe de seis crianças, Ana Maria Sampaio, de 39 anos, vive com os filhos numa casa sem saneamento, água potável e com luz apenas na cozinha improvisada. Moradores de Engenheiro Pedreira, no Rio, sobrevivem com os R$ 200 que o marido e pai dos meninos ganha fazendo bicos. Sem acesso a nenhum benefício social, Ana Maria se orgulha de mandar as crianças para a escola "faça chuva ou sol" e se ressente de ter que deixar o filho mais velho, Paulo, de 14 anos, vender, nas horas vagas, bala no trem:

- Minha irmã ajuda quando pode. As crianças choram com fome, e eu tento ter pelo menos angu. Então, o mais velho resolveu ajudar.

Paulo é uma das 1,068 milhão de crianças de 10 a 14 anos que trabalha no Brasil, segundo levantamento do Ministério Público do Trabalho no Ceará, com base no Censo 2010. O estudo constatou aumento de 2000 a 2010 no número de crianças de 10 a 14 anos trabalhando em 16 estados: o maior crescimento foi em Tocantins, Ceará, Piauí, Espírito Santo e Paraíba.

Em Barra do Bugres (MT), por R$ 4 por dia, 12 menores trabalhavam em duas padarias das 4h30m às 9h, de segunda a sábado, e tudo o que consumiam era descontado da diária. Em Nossa Senhora das Dores (SE), duas crianças entre 10 e 15 anos trabalhavam num matadouro. Em Lajes (RN), 12 crianças de 10 a 15 anos foram encontradas, em fiscalização no mês passado, construindo túmulos.

Segundo o Sistema de Informações sobre Focos de Trabalho Infantil, do Ministério do Trabalho, este ano, até novembro, o país registrou 7.133 denúncias, como em construção civil, serrarias, pecuária e carvoaria. Responsável por combater o trabalho de crianças e adolescentes, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), gerenciado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), é uma das ações do Brasil Sem Miséria, plano que desde domingo é tema de reportagens do GLOBO. O Peti, diz o ministério, atende hoje 851.665 mil crianças e adolescentes de 6 a 15 anos. O total de repasses para as bolsas do programa este ano já passa dos R$ 9 milhões. Segundo o MDS, "o Censo 2010 indica queda de 10,8% em comparação com o ano 2000 (de 10 a 15 anos) no trabalho infantil. Essa redução se deve às ações integradas do governo federal".

Desde 2005, o Peti está integrado ao Bolsa Família e, segundo o MDS, "a responsabilidade por inserir no Cadastro Único as informações das famílias que receberão os recursos é do governo municipal". Além de transferir renda, o programa tem como eixo o acompanhamento familiar pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).

- Um dos problemas para a execução do Peti é o mau funcionamento dos Cras. Muitos ou não estão instalados, ou funcionam de forma precária, sem pessoal suficiente ou corpo técnico qualificado. A questão é que o Cras é a unidade primária de atendimento da população mais carente - diz o procurador Ailton Benedito de Souza, que em abril instaurou inquérito sobre irregularidades em Inhumas (GO).

Segundo o MDS, os centros são monitorados pelo Censo do Sistema Único de Assistência Social. "Outra ferramenta de monitoramento é o CadSuas, cadastro preenchido pelos gestores municipais e estaduais com informações sobre os Cras e Creas", além do "controle social exercido pelos Conselhos de Assistência Social".

Procurador do Ministério Público do Trabalho no Pará, Marcelo Castagna reconhece a importância do Peti, mas diz que " talvez as prefeituras se omitam":

- Não acredito que o governo federal negue bolsa. Mas talvez as prefeituras se omitam ao fazer os cadastros, não ofereçam a bolsa, não se estruturem para encontrar as crianças. Em Marabá e Tucuruí, os municípios não fazem o mínimo para evitar a exploração.

Paula de Moura, procuradora do Trabalho de Rondônia, conta que o estado começou projeto piloto para tentar ampliar a ação do Peti. Em 2012, até agosto, foram abertos 85 processos para investigar denúncias de trabalho infantil:

- Estamos indo aos municípios orientá-los sobre a aplicação dos recursos do Peti - diz a procuradora, citando o aumento de casos em lava-jatos.

Vice-coordenadora nacional da CoordInfância e procuradora do Trabalho, Thalma Rosa de Almeida defende o Peti, mas diz que é preciso enfrentar também a questão social:

- A transferência de renda vai ajudar a sobreviver. Mas o trabalho infantil é um problema social e cultural. Muitos pais têm ideia de que trabalhar é bom. Isso também precisa ser combatido.