Título: O racismo minimizado
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Fonte: Correio Braziliense, 13/10/2009, Opinião, p. 20

Ao se candidatar a uma vaga de empregada doméstica em São Paulo, em 1997, Simone André Diniz foi rejeitada por não atender a um requisito racista: o contratante dava preferência a pessoas de cor branca, conforme anúncio publicado em jornal. Apesar de o racismo ser considerado contravenção penal no país desde julho de 1951, com a aprovação da Lei Afonso Arinos, e de ter sido agravado pela Constituição de 1988, que o revestiu de caráter imprescritível e inafiançável, a vítima teve sua denúncia arquivada à época, sob a alegação de inconsistência. O caso valeu ao Brasil, em outubro de 2006, uma condenação na Organização dos Estados Americanos. A OEA não só determinou que a ofendida fosse reparada, como recomendou ao Estado nacional providências no sentido de preparar os funcionários da Justiça e da polícia para ações do gênero.

Tese de doutorado em sociologia defendida recentemente na Universidade de Brasília (UnB) mostra que, 10 anos depois, o caso Simone está longe de ser fato isolado. O autor do estudo, Ivair Augusto Alves dos Santos, assessor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, analisou 7.034 processos penais envolvendo racismo no período compreendido entre um ano antes e um ano depois da decisão da OEA (de 2005 a 2007). O resultado é estarrecedor: em 92% deles, o crime foi desclassificado para injúria. O quadro torna-se ainda mais assustador quando se sabe que apenas uma em cada 17 denúncias de racismo vira ação penal no Brasil. Fica difícil, assim, evitar que a sociedade veja nessa conduta certa conivência da Justiça com o racismo.

A injúria, segundo o artigo 140 do Código Penal, é apenada com multa ou de três meses a um ano de detenção. Como se trata de punição de menor efeito na restrição da liberdade, os juízes quase sempre condenam o infrator a pagar multa, fornecer cestas básicas ou prestar serviços à comunidade. Já a prática do racismo, conforme consta no inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal, ¿constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei¿ ¿ até cinco anos de prisão, segundo a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Mais: tipificado o crime como racismo, a ação é pública, movida pelo Ministério Público; alterada a tipificação para injúria racial, passa a ser privada, o que obriga a parte ofendida a constituir advogado ou apelar à Defensoria Pública.

A custódia do acusado em regime presidional não tem apenas a função de punir, mas, sobretudo, de constituir advertência para que se respeite a lei. Essa função pedagógica parece não estar sendo observada por muitos juízes. Falta aos magistrados brasileiros acertar o passo com a legislação anti-racista do país. Do contrário, a curva ascendente do número de ações penais verificada nos últimos anos tenderá a se inverter, desestimulando as vítimas a procurar a Justiça. Não se pode minimizar o fato de pessoas serem insultadas pela cor da pele ou encontrarem qualquer tipo de dificuldade maior na procura por uma vaga do mercado de trabalho, na rede de ensino ou mesmo para se locomoverem. Infelizmente, quase três anos depois, a recomendação da OEA continua valendo. Que seja acatada, antes de nova e vergonhosa condenação.