Título: Crise agrava a fome
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 15/10/2009, Mundo, p. 30

Relatório das Nações Unidas confirma que número de famintos passa de 1 bilhão e alerta para o risco de as Metas do Milênio não serem cumpridas. População pobre é a que mais sofre

A fome já devasta a dignidade e a saúde de 1,02 bilhão de pessoas (15% da população mundial) e é uma realidade para 6,3% dos brasileiros (11,9 milhões). Na Ásia, no Pacífico e na África, 913 milhões de habitantes não têm o que comer. O estudante Boroldoi Myagmar, 23 anos, mora em Ulan Bator, capital da Mongólia ¿ país asiático com maior proporção de famintos (29%) depois da Coreia do Norte (32%). Em entrevista ao Correio, pela internet, ele contou que boa parte dos mongóis não têm acesso a alimentos. ¿Nos últimos anos, o preço da gasolina dobrou e isso afetou tanto a economia que tornou as pessoas mais pobres. Ainda que a carne seja barata, para muitos é impossível comprá-la¿, afirmou.

No Quênia, James Wariero, 31, considera a situação ¿bastante ruim¿. ¿Os preços dos alimentos aumentaram e a estiagem assola o país. A comida básica por aqui é a farinha de milho, que dobrou de valor em um ano e meio. Um pacote de 2kg custava pouco mais de meio dólar, hoje vale mais de um¿, comentou o farmacêutico que vive em Kisumu, no oeste, às margens do Lago Vitória, com a mulher e o filho de 3 anos. Para piorar, as comunidades pastoris perderam boa parte do seu gado, por causa da falta de pasto. Resultado: três em cada 10 quenianos são famintos.

Os depoimentos de Boroldoi e de James ilustram as recentes constatações da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, pela sigla em inglês). De acordo com o relatório A situação da insegurança alimentar no mundo, divulgado na véspera do Dia Mundial do Alimento, a crise financeira global mergulhou os países pobres numa crise sem precedentes. No fim do ano passado, os preços dos alimentos básicos ficaram 17% mais altos do que em 2006. ¿Nenhuma nação está imune e, como de costume, são os países mais pobres e as pessoas mais miseráveis que estão sofrendo mais¿, alerta o documento. O texto também revela que 2009 foi um ano particularmente devastador, graças à recessão. Segundo a FAO, ao menos que a tendência seja revertida, o objetivo de reduzir pela metade o número de famintos, até 2015, não será alcançado.

Nos períodos 1995-1997 e 2004-2006, a fome só não se agravou na América Latina e no Caribe ¿ mas essas regiões não escaparam do impacto da crise financeira, nos últimos meses. O aumento no número de pessoas de com fome durante ambos os períodos de preços baixos e prosperidade econômica e de inflação e recessão escancarou a fragilidade do sistema de governança de segurança alimentar global. ¿Os líderes mundiais têm reagido de modo enérgico contra a crise econômica e financeira, e conseguiram mobilizar bilhões de dólares em um curto prazo. A mesma ação forte é necessária agora para combater a fome e a pobreza¿, declarou Jacques Diouf, diretor-geral da FAO.

Ainda segundo o estudo, a recessão afetou grandes regiões simultaneamente, interferindo na desvalorização da moeda e dificultando empréstimos. ¿Ao enfrentarem as altas dos preços de alimentos e a redução da renda e do emprego, e tendo vendido os bens, reduzido o consumo de comida e cortado gastos essenciais em saúde e educação, as famílias mais pobres se arriscam em cair na miséria profunda e na armadilha da fome¿, alerta o relatório.

Em alguns países, como a Indonésia, desastres naturais só agravaram a fome. ¿Entre as cidades de Padang e Pariaman, há várias pequenas vilas. Antes do terremoto de 30 de setembro, seus habitantes já tinham condições de vida ruins. Agora, sofrem sem a ajuda e nenhum tipo de alimentos tem chegado até eles¿, contou ao Correio Difiani Apriyanti, 28, professora da Universidade Estadual Politécnica de Padang, na Ilha de Sumatra.

Leia a íntegra do relatório, em inglês, da FAO (em PDF)

entrevista - david dawe ¿O problema é de acesso à comida¿ Arquivo Pessoa

A inflação do preço da comida e a crise econômica afetaram a habilidade da população mais carente de comprar alimentos¿

O norte-americano David Dawe, Ph.D. em Economia pela Universidade de Harvard e coordenador técnico do relatório A situação da insegurança alimentar no mundo, a fome aumenta em todos os continentes e expõe um problema de ordem estrutural. Em entrevista ao Correio, por e-mail, o economista da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) elogiou a atuação do Brasil no combate à desnutrição, mas alertou para a política de estímulo de biocombustíveis.

Quais as conclusões mais alarmantes do documento e em que regiões do mundo a fome aumentou no último ano? Há duas conclusões alarmantes do relatório. Em primeiro lugar, o número de pessoas famintas no mundo ultrapassou o 1 bilhão, graças à crise econômica e à crise do preço dos alimentos. Esse é o maior número de famintos desde 1970, o primeiro ano para o qual a FAO tem registros históricos. Em segundo lugar, mesmo antes da crise, havia mais de 850 milhões de pessoas subnutridas, o que sugere um problema mais estrutural com o sistema alimentar mundial. A fome tem aumentado em todos os locais do mundo. Ambas as crises não pouparam nenhuma região.

Mas que impactos a crise financeira global teve sobre a disponibilidade de alimentos? A crise financeira global não teve muito efeito na disponibilidade ou escassez de comida ao redor do mundo. Pelo contrário, a longo prazo existe uma tendência de alta da produção alimentar. No entanto, a inflação do preço da comida e a crise econômica afetaram a habilidade da população mais carente de comprar o alimento de que ela precisa. A fome crescente é um problema de acesso à comida, e não de disponibilidade de alimentos.

Como o senhor vê a relação entre a integração das nações e a fome? A globalização dificultou o acesso à comida? O mundo é hoje mais globalizado e integrado do que era na década de 1970. E isso tem aumentado a transmissão de choques dos países desenvolvidos. Mas, nos anos recentes, a globalização tem ajudado a diminuir a fome, ao fornecer comida mais barata e, além disso, oportunidades de renda para muitas pessoas carentes.

O Brasil tem feito progressos na luta contra a fome? O Brasil tem caminhado a passos largos no combate a fome, incluindo seu trabalho pioneiro na operacionalização do direito à comida. Nesse relatório, temos duas partes especiais sobre o Brasil ¿ uma sobre o direito ao alimento e outra sobre a resposta à crise econômica. O país reduziu a percentagem de desnutridos de 10% entre 1995 e 1997 para 6% entre 2004 e 2006 e tem feito progresso definido em direção à primeira Meta de Desenvolvimento do Milênio. A taxa de 6% de subnutridos é também bem baixa ¿ a menor da América do Sul. O número de desnutridos caiu de 15,6 milhões para 11,9 milhões.

Biocombustíveis, como o etanol brasileiro, não estimulariam a economia e ajudariam na produção alimentícia? Os biocombustíveis têm o potencial de melhorar a renda dos fazendeiros, mas existe também a possibilidade de eles aumentarem os preços dos alimentos e tornarem mais difícil que os pobres obtenham comida. É importante que eles não façam com que os mais pobres percam o direito à terra. (RC)