Título: Fraude fundo de quintal
Autor: Lima, Maria
Fonte: Correio Braziliense, 11/10/2009, Política, p. 4

É prática comum no governo federal a contratação de empresas sem capacidade técnica e financeira para cumprir a obrigação

Tribunal de Contas da União suspendeu 36 contratos no primeiro semestre

O fiasco na execução do contrato firmado entre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e o Consórcio Nacional de Avaliação e Seleção (Connasel) para aplicação da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trouxe à tona um vício no Brasil. As empresas que formavam o consórcio contavam com baixo capital social. A que liderava o grupo responde a processos na Justiça por fraude em outro concurso. Nenhuma delas havia lidado com contrato tão volumoso, em valores e obrigações. Deu no que deu. O episódio explicitou o que quem lida com a fiscalização de obras e serviços bancados com dinheiro público já sabe há tempos: a contratação de empresas sem capacidade técnica ou financeira é prática comum na administração pública no país.

Só no primeiro semestre deste ano o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu cautelarmente 36 contratos e licitações. O embargo evitou um dano ao erário de aproximadamente R$ 276 milhões. Outros R$ 331 milhões terão de ser recuperados pelos cofres públicos. Eles são frutos das condenações feitas pela corte por mau uso do dinheiro público.

Na cruzada pelo aproveitamento efetivo dos recursos públicos, a transparência é uma das armas utilizadas pelos fiscalizadores. No site da Controladoria-Geral da União (CGU), por exemplo, é possível encontrar o nome de mais de 1.060 empresas(1) que sofreram sanções por órgãos da administração pública por conta de irregularidades na execução de contratos. São empreiteiras, empresas que terceirizam mão de obra, que vendem serviços. Para todas as áreas, há representantes. O banco de dados com os nomes das mais de mil firmas declaradas inidôneas ou suspensas é abastecido por órgãos do governo federal, dos estados, TCU e CGU.

Entre as listadas, há casos de superfaturamento, sobrepreço e até de fraude na apresentação de documentos para conseguir habilitação em processos de licitação. É o caso detectado em auditoria do TCU na Secretaria de Saúde do Amapá, onde estava prevista a aquisição de tomógrafos com recursos federais. Os técnicos responsáveis pela investigação são categóricos: ¿quando o pregão tiver como objeto a prestação de serviço que apresente certa complexidade, a exigência de qualificação técnica faz-se necessária¿. A empresa que venceu a licitação, Carp-H & Coimbra (cujo nome está listado no banco de dados da CGU), apresentou proposta de R$ 960 mil. Os auditores conseguiram orçamento para compra do mesmo equipamento por R$ 650 mil. Seria o suficiente, se não houvesse a constatação, ainda, de que o endereço indicado como sede da empresa simplesmente não existia.

Mecanismos ¿A administração pública tem, sim, mecanismos para evitar esse tipo de contratação. A lei de licitações oferece uma série de recursos, como a comprovação de capital social e experiência no ramo de atuação. O problema é que nada disso é arbitrário, é preciso que os gestores tenham motivação para tanto¿, explicou o secretário de Controle Externo do TCU no Mato Grosso, Carlos Ferraz.

Por isso, na avaliação de quem fiscaliza todos os dias a aplicação dos recursos públicos, 1.060 empresas ainda é pouco. ¿Isso é pouco para o universo em que trabalhamos. O problema é que os órgãos acabam não investigando as empresas e esse trabalho acaba ficando muito a cargo do TCU e da CGU¿, explicou o secretário-adjunto de Planejamento e Procedimento do TCU, Marcelo Eira.

1- Inidôneas Para que uma empresa seja declarada inidônea, é preciso abrir um procedimento administrativo para investigar todas as denúncias que pesam contra ela. Esse processo pode ser aberto pelo órgão que se sentiu lesado pela atuação da empresa ou pelas estruturas de fiscalização. É preciso abrir espaço para ampla defesa e investigação detalhada. Ao final, no caso de condenação, a empresa fica impedida de firmar contratos com a administração pública até que o prazo da sanção se esgote.

O número 1060 Número de empresas listadas na CGU por conta de irregularidades na execução de contratos

Vício de origem

Entre os especialistas ouvidos pelo Correio há uma unanimidade: em 90% dos casos de irregularidades na execução de contratos ou licitações, o início do procedimento já estava comprometido. ¿Falta planejamento para a execução das políticas públicas no Brasil. Na maioria das vezes, o projeto básico oferecido pelos administradores já é deficiente¿, detalhou o secretário de fiscalização externa do Tribunal de Contas da União no Mato Grosso, Carlos Ferraz.

Para os técnicos, é a falta de planejamento dessas ações que abre espaço para que empresas sem expertise ocupem cada vez mais espaço. ¿Já virou piada entre os auditores. Às vezes, pegamos um processo e comentamos: ¿Isso aqui está com toda pinta de empresa pastel, que tem apenas uma pasta e um telefone¿, comentou Ferraz.

No Distrito Federal, denúncia do Ministério Público fez com que a Justiça suspendesse contrato de R$ 135 milhões, firmado entre a Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal e a Fundação Gonçalves Lêdo.

Segundo o Ministério Público, ao longo do ano passado, todas as despesas declaradas pela Gonçalves Lêdo chegaram a R$ 11.533,89. A quantia é insuficiente para que, por exemplo, a empresa mantivesse em sua estrutura apenas um funcionário com salário de R$ 1 mil por mês.