Título: Após 42 anos, refém do 'Caravelle' trava luta por reparação
Autor: Bottari, Elenice
Fonte: O Globo, 10/02/2013, País, p. 4

Em 1 de janeiro de 1970, o comissário de bordo José Omar da Silveira Morais saiu em disparada do enterro da avó de sua mulher direto para o Aeroporto do Galeão, onde embarcaria no Caravelle da Cruzeiro do Sul para substituir um outro avião que enguiçara no Aeroporto de Montevidéu. Feito o traslado dos passageiros e finalizada a decolagem para o Rio de Janeiro, sua atenção foi desviada pela presença de uma bela jovem, de saia curta, sentada em uma das poltronas do canto. Foi nesse momento de distração que dois rapazes, sentados quase em frente a ele, sacaram armas e anunciaram o sequestro. A jovem assumiria o controle da tripulação.

Hoje, mais de 40 anos depois da ação, José Omar tenta provar na Comissão de Anistia que aquele episódio liquidou com sua carreira. O Caravelle acabou desviado para Cuba, em um dos momentos mais conturbados da história política brasileira.

Ele sustenta que foi varrido da aviação civil em 1972 por não ter colaborado com os adidos militares que atuaram para resgatar o avião durante as escalas técnicas para reabastecimento, antes da chegada a Cuba. José Omar afirma que a dificuldade para obter documentos sobre o Inquérito Policial Militar (IPM) da Aeronáutica tem sido o maior obstáculo para provar seu direito.

Além de documentos, na condição de vítima de sequestro e testemunha no IPM, Omar ainda precisa provar que foi perseguido político.

- Onde eu entro nesta história? O Caravelle tinha pouca autonomia de voo, o que obrigou o comandante a parar em Buenos Aires, Santiago, Antofagasta (Chile) e Lima. Os sequestradores só permitiam a saída de um refém da aeronave para negociar combustível e alimentação para todos. Ou descia o engenheiro de voo, Hélio Borges, ou descia eu. Os militares queriam que nós colaborássemos com a invasão do avião. Como eu faria isto? Uma invasão militar teria provocado uma carnificina - afirma o aposentado de 73 anos, que vive hoje de favor na casa de uma irmã.

Para chegar a Cuba, o Caravelle demorou quatro dias. Lá, ficou mais três dias retido, enquanto a Embaixada da Suíça (o Brasil não tinha naquele momento relações diplomáticas com o país de Fidel) negociava a liberação da aeronave. De volta ao Rio, a tripulação saiu do avião direto para o cassino dos oficiais, onde começaram os interrogatórios:

- Todos foram logo liberados, menos eu, que fiquei prestando depoimento por cerca de seis horas. Fui para casa e, dois dias depois, acredito, fui acordado de madrugada e levado para uma sala com instrumentos de tortura no Ministério da Aeronáutica. Era um lugar pequeno onde havia porretes, correntes, uma bateria de caminhão e milhares de fios desencapados. Fiquei ali por cerca de quatro horas até que viesse um oficial para me interrogar - relatou Omar, que recorda um longo período de depoimentos:

- Foram vários depoimentos. Eu não sei se duraram um ano. Só sei que eu que tinha 12 anos de aviação, todas as semanas viajava para o exterior, mas depois do sequestro, passei a fazer apenas voos domésticos até ser demitido em 1972.

José Omar conta que pediu cópias de seus depoimentos ao Comando da Aeronáutica, mas só recebeu uma série de atestados médicos com exames feitos pela aviação civil, que atestavam que, em fevereiro de 1972, ele se tornara um paciente de oligofrenia, doença que se desenvolve na infância e provoca deficiência mental:

- Quer dizer que até os 30 anos eu era um sujeito normal e um comissário qualificado que, em quatro anos na Cruzeiro do Sul, galguei cargos de chefia, mas, depois do sequestro, virei um retardado, um débil mental e inapto para a profissão? - questiona José Omar.

O Comando da Aeronáutica informou que não tem dados que indiquem o monitoramento do ex-comissário durante o regime militar. E diz que o IPM onde ele consta como testemunha foi encaminhado para a 1ª Auditoria de Justiça Militar do Rio. O processo está desde 1979 no Superior Tribunal Militar (STM).

O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, informou que o caso de José Omar ainda está sendo analisado. Segundo ele, a lei prevê reparação administrativa no caso de pessoas que foram perseguidas ou prejudicadas, inclusive no setor privado, desde que "por ação direta do Estado e por motivação exclusivamente política".

- A lei 10.559 de 2002 (que criou a Comissão de Anistia no âmbito no Ministério da Justiça) é clara para definir que só os casos de motivação política têm direito à reparação administrativa. E essa reparação não vale para empresas. O jornal "Tribuna da Imprensa", por exemplo, alegava que foi inúmeras vezes prejudicado por censura durante o regime militar. Aqui não teve direito a reparação, mas ganhou indenização na Justiça Federal - explicou Paulo Abrão.

Pivô de sequestro teve pedido de anistia negado pela Comissão

O Caravelle, da Cruzeiro do Sul, foi sequestrado pelos então guerrilheiros Cláudio Galeno Magalhães Linhares - primeiro marido da presidente Dilma Rousseff -, James Allen da Luz, Athos Magno Costa e Silva, Nestor Guimarães Herédia, Isolde Sommer e Marília Guimarães Freire. Quatro deles - Galeno, Athos, Nestor e Isolde - pediram e conseguiram direito a indenizações na Comissão de Anistia. James Allen morreu em 1973 e Marília Guimarães, que fugia para Cuba com dois filhos de 2 e 3 anos de idade, teve o pedido de anistia negado pela Comissão.

- Logo no início da comissão, foram aceitos testemunhos, mas com o tempo foram sendo criados procedimentos até mesmo para evitar fraudes. Só que hoje são tantas as exigências que só quem tem recibo de que foi demitido ou perdeu patrimônio por causa da perseguição política consegue. Na prática, a indenização só vai sair para os famosos - afirmou Marília.

A história de clandestinidade dessa ex-guerrilheira e hoje escritora e empresária - documentada em jornais da época e no livro escrito por ela "Nesta terra, neste instante" - começou um ano antes do sequestro, quando, dona de uma escola no Méier para 800 alunos, ela utilizava um mimeógrafo da instituição para a impressão de panfletos do movimento Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) para denunciar a tortura no país. Nas férias, ela transferiu o equipamento para o aparelho em Niterói, onde Liszt Vieira já se refugiava. O aparelho caiu e com ele toda a vida social de Marília.

Após quase um ano de fugas espetaculares, Marília deixou o Brasil pelo Sul para Montevidéu, onde no dia 1º de Março de 1970 entrou no avião prefixo PP PDZ, carregando no colo duas crianças, bolsas com mamadeiras e, na cinta, cinco revólveres. Não chamou a atenção. Pelo excesso de bolsas e crianças para uma pessoa tão pequena (pesava apenas 40 quilos na época), Marília até recebeu ajuda da polícia uruguaia para entrar no avião.

Outro personagem do sequestro, o engenheiro de voo Hélio Borges, conseguiu ser anistiado. Foi ele, durante os quatro dias de viagem até Cuba, o refém que negociava com os adidos militares e autoridades locais nas cidades onde o Caravelle posou para reabastecimento. E, por vezes, entrou em atrito com os militares.

- Mas eu não fui demitido por isto. Fui demitido em 1988 por uma greve na aviação, com base em um decreto ainda do regime militar.