Título: Desejo e preconceito
Autor: Pereira, Rodrigo da Cunha
Fonte: O Globo, 10/02/2013, Opinião, p. 19

Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o companheiro de uma relação homoafetiva pudesse ser incluído como dependen­te do Club Athlético Paulistano. Tal decisão in­sere-se em um contexto histórico de luta contra o preconceito e discriminação.

Em 1984 o Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou que uma mulher, pelo simples fato de ser mãe solteira, não mais poderia ser impe­dida de freqüentar o clube social da cidade de Conselheiro Lafaiete. Paradoxalmente o pai sol­teiro, desta mesma criança nenhuma restrição ou discriminação sofria naquele ambiente.

Na cidade de Tiradentes, também interior de Minas Gerais, até pouco tempo uma das melho­res pousadas não aceitava pessoas negras como hóspedes.

Antes da Constituição de 1988, filhos e familias sem o selo da oficialidade do casamento eram considerados ilegítimos e sofriam todo ti­po de discriminação. As mulheres "desquitadas" eram evitadas por encarnarem uma liber­dade que afrontava as famílias ditas normais.

O que leva uma pessoa a ter preconceito e a discriminar formas de conduta, ou relações di­ferentes da sua? Porque "à mente apavora o que ainda não é mesmo velho" como já cantou a bo­la Caetano Veloso?

Certamente a história particular de cada su­jeito, de cada dirigente político, de cada julga­dor, traz consigo, em sua constituição e forma­ção psíquica, uma subjetividade determinada, ou influenciada, também pelo contexto histórico familiar e social. Mas por que uns têm pre­conceito e discriminam, e outros não. Por que um mesmo caso levado à justiça pode receber diferentes interpretações?

A Igreja Católica invoca o princípio da dignida­de humana para afirmar que famílias so podem se constituir pelo sagrado laço do matrimônio, em relações heteroafetivas e indissolúveis.

Invocando este mesmo princípio o Supremo Tribunal Federal declarou em maio de 2010 que nas relações homoafetivas também se podem constituir famílias.

Diferentes interpretações para as mesmas si­tuações são comuns nos julgados do mundo in­teiro. Os juizes são imparciais, mas não são neu­tros. Cada caso, cada julgamento recebe sua carga de subjetividade e influência do inconsciente e das convicções particulares de cada julgador. E é aí que mora o perigo.

Por exemplo, o tribunal paulista já determi­nou que uma criança fosse para o abrigo, mes­mo após viver e ser criada durante anos por um casal de homens, a pedido da empregada do­méstica que lhes confiou informalmente tal adoção e desapareceu no mundo. Os julgadores que praticaram essa violência contra a criança certamente o fizeram bem intencionados e jus­tificados pela sua moral particular. Mas de boas intenções o inferno está cheio.

Para que o Judiciário deixe de repetir as injus­tiças históricas em seus julgamentos de conteú­do moral, assim como os deputados e senado­res que impedem novas leis sobre as novas rela­ções familiares, é preciso compreender que se pode até tentar controlar os comportamentos, mas não o desejo.

Os que se sentem incomodados com compor­tamentos sexuais e morais diferentes do seu de­veriam procurar em suas próprias fantasias as razões deste incômodo. Pessoas em paz com a própria sexualidade aceitam a dos outros com respeito e naturalidade. Reprimir a sexualidade alheia é uma forma de ajudar a reprimir as pró­prias fantasias.

Casamento gay, adoção homoparental e a an­tecipação terapêutica da gestação etc sofrem a mesma condenação religiosa.

Seja lá como for, o que um Estado laico não deveria definitivamente permitir é que continu­em acontecendo injustiças e exclusões sociais em razão de convicções morais particularizadas e estigmatizantes.