Título: A herança maldita do papado de Ratzinger
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Fonte: O Globo, 16/02/2013, Mundo, p. 28

Bento XVI sai como entrou, pronunciando belos discursos, recebidos com aplausos. Pena que os feitos, em seu pontificado, não tenham alcançado o mesmo grau de aprovação. O balanço de seus quase oito anos à frente da Igreja é bastante pobre, embora seja difícil saber o grau de sua responsabilidade nisso. O certo é que Joseph Ratzinger não deteve a perda de influência moral e social da instituição milenar que dirige: suas tentativas de resgatar a velha liturgia naufragaram e ele deixa a Cúria mais confrontada do que nunca.

Muitos aplaudem o Papa que se vai, com o alívio de ver que, com ele, vai também seu governo; e acaba, momentaneamente, a guerra civil que há meses combate dentro dos velhos muros da Santa Sé. Seu sucessor, no entanto, encontrará praticamente intactos os problemas pendentes da Igreja, que se arrastam ao menos desde Paulo VI, e alguns mais, que constituem a herança maldita de Bento XVI.

A Igreja é uma instituição poderosa, com 1,2 bilhão de fiéis, cinco mil bispos, 412 mil sacerdotes e 721 mil religiosas. Possui grandes ONGs (como Cáritas), que assistem milhões de pessoas necessitadas no mundo. Dirigi-la é cada vez mais difícil. Tanto no plano administrativo como no espiritual. Ratzinger, a quem como Papa, eleito em 19 de abril de 2005, corresponde ambas as tarefas, deixou a primeira nas mãos do cardeal Tarcisio Bertone, de 78 anos - secretário de Estado desde 2006, quando substituiu a outro grande obreiro da Cúria e seu inimigo pessoal, Angelo Sodano. Embora não seja o único culpado, Bertone conseguiu acumular em apenas sete anos uma prodigiosa quantidade de inimigos.

doutrina conservadora

A comunicação de Bento XVI com os fiéis esteve marcada também pela distância que seu caráter impõe. As tentativas de apresentá-lo como um Papa moderno, com conta no Twitter, tiveram resultados quase patéticos, quando se sabe que ele redige à mão livros, discursos e documentos. Nestes oito anos, se manteve fiel à doutrina social e moral da Igreja, deferida por seus antecessores, que se resume em alguns pontos básicos: condenação do aborto e da eutanásia; rechaço da homossexualidade como livre opção sexual; condenação de pesquisas com células-tronco ou do uso preventivo da camisinha. Posições que se chocam de frente com a realidade de um mundo onde os governos aprovam, um após outro, leis favoráveis ao matrimônio gay, e dão início a um debate sobre o direito a uma morte digna. São detalhes que demonstram uma perda de influência da Igreja, ante os quais Bento XVI não soube ou não conseguiu fazer frente.

O Papa acusa o crescente desinteresse por Deus do homem comum, mas foi o próprio clero que deu as costas a alguns de seus esforços, como o de recuperar a missa em latim, para trazer às rédeas de Roma os cismáticos seguidores de Marcel Lefebvre.

Desde o primeiro dia de seu pontificado, Bento XVI também teve que lidar com um assunto espinhoso, a devastadora crise dos sacerdotes pederastas, problema que João Paulo II não enfrentou. E o fez com energia. Foi Ratzinger quem substituiu Marcial Maciel, líder dos Legionários de Cristo, e abusador sexual de jovens seguidores, que durante o papado de Karol Wojtyla havia tido acesso franco ao Vaticano.

Já o sucessor de Ratzinger terá que abordar vários problemas adiados, entre os quais, a pacificação de uma Cúria, onde os inimigos de Bertone torpedeiam qualquer iniciativa papal; e a normalização do funcionamento do Banco do Vaticano, estopim de boa parte das tensões na cúpula do Vaticano.