Título: Novo banqueiro de Deus
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Fonte: O Globo, 16/02/2013, Mundo, p. 28
Numa de suas últimas nomeações de peso antes da renúncia, marcada para o próximo dia 28, o Papa Bento XVI endossou a escolha do executivo alemão Ernst von Freyberg para a presidência do Instituto para Obras Religiosas (IOR), também conhecido como Banco do Vaticano. A indicação foi interpretada como uma tentativa de moralizar a instituição, que já foi apelidada de "a coroa de espinhos" do Pontífice em razão do histórico de escândalos financeiros envolvendo suspeitas de lavagem de dinheiro e desvio de recursos. Mas o currículo do novo executivo, escolhido a partir de um longo processo de seleção, causou polêmica: o novo "banqueiro de Deus" tem laços com um estaleiro que constrói navios de guerra. O Vaticano argumenta, no entanto, que ele não tem relações diretas com a indústria militar.
O histórico profissional do executivo não é o único fator de estranheza. As motivações da nomeação, feita a menos de duas semanas da abdicação do Pontífice, dividiram a imprensa italiana. Para alguns veículos, a contratação representa uma forma de estender a influência de Bento XIV para o próximo papado. Algo comparável à nomeação de um presidente do Banco Central da Itália às vésperas da posse de um novo primeiro-ministro.
Para outros veículos, no entanto, o gesto é uma tentativa de Bento XVI de blindar a instituição e proteger as reformas adotadas nos últimos anos. O Banco do Vaticano foi reformado em 1989 pelo Papa João Paulo II. No fim de 2010, em outra iniciativa em prol da transparência, Bento XVI assinou uma lei para lutar contra a lavagem de dinheiro em instituições financeiras do Vaticano. O objetivo era se adequar às regras da chamada "lista branca", de Estados que respeitam as normas contra práticas irregulares.
Apesar dessas iniciativas, as práticas financeiras da Igreja parecem tão obscuras quanto a Torre de São Pio V, que abriga a sede do banco e seus 112 funcionários. No ano passado, quando a instituição abriu suas contas pela primeira vez desde que foi criada, em 1942, para um órgão externo - a Moneyval, agência antilavagem de dinheiro do Conselho da Europa - o resultado foi desanimador. A agência reconheceu avanços, mas constatou que o IOR não cumpria os padrões estabelecidos no setor bancário para combater a lavagem de dinheiro, a evasão fiscal e outros crimes financeiros, além de sofrer com a falta de regulação externa.
Apesar do nome, o Banco do Vaticano tem características singulares. O orçamento e as transações são de conhecimento de um círculo restrito. Operações no mercado global são feitas por intermédio de outros bancos, o que possibilita a transferência de recursos em sigilo. Os clientes são identificados por números, seus caixas automáticos são em latim e não há filiais fora do Vaticano.
NOVA COMISSÃO DE CARDEAIS À VISTA
A promoção de reformas na gestão financeira do Vaticano não é à toa. Em 2011, as contas da Igreja fecharam no vermelho, com déficit de ¬ 14,9 milhões. No mesmo ano, o IOR foi obrigado a transferir ¬ 49 milhões para atender problemas de liquidez. As dificuldades financeiras estão ligadas ao impacto da crise e a indenizações pagas a vítimas de abuso sexual. Na Filadélfia, por exemplo, a arquidiocese tentou vender parte de seu patrimônio imobiliário, mas não teve sucesso.
Diante deste quadro, o aval do Pontífice à nomeação de Freyberg, apresentado como alguém com ampla experiência em assuntos financeiros, foi explicitado no próprio comunicado da Igreja. "O Santo Padre, que acompanhou de perto todo o processo de seleção e eleição do novo presidente do Conselho de Superintendência do IOR, expressou seu total apoio à decisão da Comissão de Cardeais".
O banco é administrado por um conselho de profissionais, ligados ao mercado financeiro. Apesar da escolha do novo presidente, os demais membros permanecerão no cargo. Eles se reportam diretamente a uma Comissão de Cardeais, presidida pelo secretário de Estado, Tarcisio Bertone, um dos aliados próximos do Papa. Deste grupo faz parte ainda o brasileiro dom Odilo Scherer. Mas, segundo o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, é provável que novos nomes sejam designados para a comissão nos próximos dias.
O processo de seleção de um novo presidente se estendeu por nove meses, desde que o italiano Ettore Gotti Tedeschi, foi afastado pelo conselho por incompetência. Sua saída ocorreu na mesma época do vazamento de documentos, no caso VatiLeaks. A virulência com que Tedeschi, membro da Opus Dei e amigo de Joseph Ratzinger, foi destituído foi interpretada por vaticanistas à época como uma tentativa de desacreditá-lo publicamente.
integrante da ordem de malta
Como escreveu à época o vaticanista Andrea Tornielli, a declaração do conselho o desqualificava e indicava que ele poderia estar ligado ao vazamento de documentos do Vaticano. Tedeschi suspeitava que por trás das contas numeradas do banco se escondia dinheiro ilegal de empresários, políticos e até da máfia. Durante sua gestão, o banco chegou a ter US$ 30 milhões em ativos congelados, e até hoje o executivo é investigado num caso de suspeita de lavagem de dinheiro.
Para escolher seu sucessor, a Santa Sé contratou a consultoria baseada em Londres Spencer Stewart, que selecionou 40 candidatos. A lista foi reduzida a seis executivos, que passaram por entrevistas pessoais até chegar ao nome de Freyberg. Na imprensa italiana, o alemão não era o favorito. Os jornais apostavam no concorrente belga Bernard De Corte.
- O Papa não o conhece pessoalmente, mas conhece sua família - disse o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.
O Vaticano ressaltou que Freyberg, de 55 anos, participa do conselho de diversas empresas de atuação global. Formado em Direito, tem passagens pelos mercados de Londres e Nova York, e é cofundador da DC Advisory Partners. Desde 2012, atua como presidente do conselho do estaleiro Blohm + Voss Group, que inclui navios de guerra entre seus projetos.
Assim como seu antecessor na presidência do Banco do Vaticano, Freyberg é católico praticante, membro da Ordem de Malta, uma organização com mais de 13 mil integrantes em todo o mundo e que tem sua origem nas Cruzadas. Ele também costuma participar de peregrinações ao santuário de Lourdes, na França.
O salário de Freyberg permanece em sigilo. Morador de Frankfurt, ele só trabalhará no Vaticano três vezes por semana e continuará no cargo na Blohm + Voss Group, o que já lhe rendeu o apelido na imprensa local de "presidente de meio período". Uma jornalista perguntou durante a entrevista no Vaticano se era apropriado passar parte da semana construindo armas e o resto da semana trabalhando para a Igreja. Além disso, se questiona o fato de Freyberg trabalhar para uma companhia com longa tradição em navios de guerra, inclusive para a Alemanha nazista.
- É um estaleiro que constrói navios em todo o mundo, aquilo que se coloca sobre os navios não depende de quem os fabrica - disse Lombardi.
O Vaticano disse inicialmente que as principais atividades da empresa são o reparo de embarcações e fabricação de iates de luxo, mas acrescentou depois que após a construção de quatro fragatas para a Marinha alemã, ela será 100% não militar.