Título: Retratos da vida insana no cárcere
Autor:
Fonte: O Globo, 17/02/2013, País, p. 3

Num buraco ao lado de uma criação de porcos, da tubulação de es­goto e do resto da comida servida na Casa de Detenção (Cadet), Cola na Co­la passa as noites e cumpre sua pena. José Antônio dos Santos não admite mais ser chamado pelo nome, refuta pai e mãe, veste-se com roupas femini­nas e se considera mulher. Só atende pela alcunha Cola na Cola, uma expres­são que ninguém sabe explicar de onde surgiu.

— Fui eu que mandei fazer essa ca­deia. E não estou preso. Fico aqui pelo chamado para acabar com a corrupção — diz ele.

O Estado nunca diagnosticou seu transtorno mental. Nos últimos dois anos, ele não aderiu a qualquer trata­mento psiquiátrico, não tomou uma única medicação nem esteve numa consulta médica. O buraco onde mora está na entrada do presídio, na parte de dentro, onde ficam os porcos, as gali­nhas e o lixo.

No pátio de uma pequena igreja im­provisada numa das celas da Cadet, o maior presídio de regime fechado de São Luís, um jovem de 24 anos estende um colchão para passar as noites. Pau­lo Ricardo Machado tem os olhos esbu- galhados, frases aceleradas, uma pos­tura impassível. Há dois meses, foi di­agnosticado com esquizofrenia paranoide e dependência ao crack. A loucu­ra de Paulo Ricardo explodiu na Cadet depois que um preso introduziu um ca­bo de vassoura no ânus do jovem. Para conter os surtos, técnicos de saúde da unidade pediram a aplicação de oito sessões de eletrochoque no rapaz. Eles dizem ter sido atendidos.

Num cubículo de cela, sem nada, Francisco Carvalhal, 50 anos, tenta domar a agressividade. Ele já foi absolvido uma vez pela Justiça, em razão de a es­quizofrenia paranoide ter impedido a compreensão de um ato ilícito. O juiz determinou que Francisco fosse inter­nado no Hospital Psiquiátrico Nina Ro­drigues, o único existente na rede pú­blica em São Luís, para o cumprimento de uma medida de segurança. O hospi­tal rejeitou o paciente. Dias depois, sem medicação e em surto, ele matou a mãe. Para escapar de um linchamento, foi levado para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Olho D"Água, onde permanece há dois meses.

800 ABSOLVIDOS AINDA DETIDOS

Cola na Cola, Paulo Ricardo e Francisco somam-se a outros presos portadores de doença mental que vivem à margem das estatísticas oficiais e da lei. Na teoria, a existência do transtorno mental e a con­sequente aplicação de uma medida de segurança a partir da absolvição pelo juiz impedem a permanência de loucos infratores nos presídios.

Levantamento inédito do GLOBO reve­la a extensão do universo de loucos nos presídios brasileiros — um grupo cuja existência parte da sociedade brasileira prefere ignorar. Pelo menos 800 pessoas absolvidas pela Justiça em razão de trans­tornos mentais e em cumprimento de medida de segurança estão detidas em presídios e cadeias públicas país afora.

A medida tem um prazo mínimo de um a três anos, é determinada pelo juiz responsável pelo processo — logo após a absolvição do acusado — e deve ser cumprida em hospitais de custódia, clí­nicas ou ambulatórios. Essas pessoas são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, uma vez que a manifes­tação dos problemas psiquiátricos im­pediu a compreensão dos crimes, e de­veriam estar em tratamento médico. Na prática, cumprem pena no cárcere.

A quantidade pode ser até três vezes maior: outros 1,7 mil brasileiros acusados de diferentes crimes já receberam indica­ção da Justiça de que podem ter transtor­nos mentais e aguardam, além de um laudo psiquiátrico, tratamento médico dentro de presídios, em casa ou nas ruas. Em alguns estados, como São Paulo, a es­pera numa fila dura mais de um ano. Em outros, o laudo nunca é elaborado.

O levantamento do GLOBO foi feito junto às secretarias de administração penitenciária, defensorias públicas e va­ras de execução penal nos estados, além de consultas a fontes nos Ministérios da Saúde e da Justiça. O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), alimentado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Mi­nistério da Justiça, registra a existência de 3,9 mil pessoas em cumprimento de medida de segurança, seja em interna­ção ou em tratamento ambulatorial. Os doentes mentais nos presídios identifi­cados pelo jornal não entram na conta.

Os números oficiais tratam dos 26 manicômios judiciários e alas de trata­mento psiquiátrico — anexadas a pre­sídios — ainda em funcionamento em 20 unidades da federação. Cabe a esses hospitais de custódia receber os loucos infratores submetidos a medidas de se­gurança de internação. O Infopen igno­ra as pessoas que cumprem a medida em prisões e até mesmo os inscritos em dois programas em Goiás e Minas Ge­rais que pregam a desinternação, como preconiza a Lei Antimanicomial de 2001. Somados os três universos — ma­nicômios, presídios e programas de de­sinternação —, a quantidade de loucos infratores é de 8,1 mil, mais do que o dobro do que consta no Infopen.

— A situação mais grave envolvendo medidas de segurança é a dos detidos em presídios. A responsabilidade pela integridade física do preso é do Execu­tivo e, pelo andamento do processo, da Justiça. A Lei de Tortura prevê respon­sabilização por ação e omissão. Não há qualquer justificativa para as prisões — afirma o juiz Luciano Losekann, auxili­ar da presidência do Conselho Nacio­nal de Justiça (CNJ) e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.

Para a produção de uma série de re­portagens sobre o assunto, O GLOBO esteve em sete presídios, uma ala de tratamento psiquiátrico e um manicô­mio judiciário em São Luís, Teresina, Goiânia e Brasília. Nas três primeiras cidades, a equipe conseguiu entrar nas unidades prisionais na companhia de juizes e de um promotor de Justiça. Em Brasília, uma autorização judicial per­mitiu ter acesso às prisões.

A reportagem flagrou uma realidade de uso contumaz do crack, hipermediçação e inexistência de prontuários em Brasília; a existência de uma ala específica para presos com transtornos mentais num presídio de regime fechado em Goiânia, além de pessoas em cumprimento de medida de segurança misturadas com detentos comuns; e doentes mentais nos mesmos espaços de pacientes com hanseníase e aids no manicômio em Teresina. Em São Luís, pessoas com transtornos mentais estão presas sem qualquer pers­pectiva de decretação da medida de se­gurança. Não há laudos, exames ou psi­quiatra: a única que atendia no complexo prisional deixou de ir ao trabalho porque está sem pagamento desde dezembro. Um rol de irregularidades que combinam com o "sistema medieval" descrito pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no final do ano passado.

SEGURANÇA NÃO GARANTE TRATAMENTO

Pelo menos 25 pessoas cumprem medida de segurança nos presídios em São Luís. Não é o caso de Cola na Cola, o detento que vive num buraco na Cadet ha tres anos. Condenado a 19 anos de prisão pela suposta prática de dois estupros, é a terceifa vez que ele passa pelo presídio. Mesmo com um evidente quadro de loucura, nunca houve um exame de insanidade mental.

A medida de segurança não garante tra­tamento psiquiátrico. Francisco Carvalhal, absolvido num processo por homicídio em razão da esquizofrenia, deveria per­manecer internado "pelo tempo necessá­rio à sua recuperação" como decidiu a Jus­tiça em São Luís. O Hospital Nina Rodri­gues deu alta a ele mesmo com a "falta de clareza sobre a possibilidade de convívio imediato. No mesmo mês, Francisco ma­tou a mãe. Ela relatava desde 2001 amea­ças e pedia a internação do filho.

Após a reportagem do GLOBO flagrar as três situações no Maranhão, a Defensoria Pública pediu aplicação de medida de se­gurança a Cola na Cola e a Paulo Ricardo, e o juiz Douglas de Melo Martins decidiu reencaminhar Francisco ao Hospital Nina Rodrigues. A Secretaria da Administração Penitenciaria do estado não respondeu aos questionamentos da reportagem.