Título: Trancado num cubículo escuro, André combina remédios e crack
Autor: Sassine, Vinícius
Fonte: O Globo, 17/02/2013, País, p. 4

-GOIÂNIA- As fotos de André Wender Gomes Ribeiro sumiram da espaçosa sala da casa da mãe, no Centro de Goiânia. Nas pare­des estão apenas as imagens da irmã mais nova, retratada como filha única nos quadros. André tem 24 anos, olhos verdes e um corpo franzino, marcado por fu­rúnculos, feridas, uma queima­dura no ombro e sangue nos dedos. Passa as 24 horas do dia numa pequena cela da Casa de Prisão Provisória (CPP), no complexo prisional da capital goiana. Não há um único equi­pamento dentro da cela, nem mesmo uma escova de dente: tudo é destruído pelo jovem ou convertido em crack e maco­nha, combustíveis da loucura de André.

A mãe, Marilda Gomes Ribei­ro, de 45 anos, afirma textual­mente: não quer o filho em ca­sa, pelo menos no atual nível de loucura atingido pelo jovem.

— Daquela forma, não quero ele na minha casa. Sempre di­go a ele: "Você não é meu filho. Meu filho era outro" — diz a cabeleireira.

André reclama das baratas na cela, mostra os ferimentos no corpo provocados por pau­ladas desferidas por outros presos. Os surtos incomodam colegas de ala no presídio. A queimadura no ombro foi cau­sada por água fervente, jogada por um detento. Quando O GLOBO descobriu André nu­ma das celas da CPP, isolado e agitado, ele tentava ajeitar uma fiação para a instalação de uma lâmpada.

No cubículo escuro, o rapaz dorme numa cama de cimento e toma banho com a água que escorre de um furo na parede. Um papelão — o único objeto presente na cela, até a chegada da lâmpada — cobre a cama.

O Estado atestou a loucura de André em 2007. Um laudo da Junta Médica do Poder Judi­ciário em Goiás apontou um quadro de doença mental — "transtorno bipolar de humor, em episódio maníaco com sin­tomas psicóticos" — e de de­pendência química. Quase seis anos atrás, os psiquiatras que assinam o laudo já faziam um alerta: a doença se tornaria crônica, caso André "não rece­ba o tratamento psiquiátrico e psicológico adequado, com re­médios e terapia para a vida toda" A internação num hospi­tal psiquiátrico deveria ocorrer com urgência. "Há periculosidade atrelada ao tratamento e aos períodos de crise."

Na cela onde está preso há oito meses, sem direito a ba­nho de sol e com uso contu­maz do crack e da maconha, André é dopado pelos agentes penitenciários. O rapaz toma medicamentos com efeitos se­dativo, anticonvulsivo e anti- psicótico. Mesmo assim, vive em surto no cubículo do presí­dio. Alterna euforia durante o dia com choros prolongados à noite. Nas celas, onde a dire­ção da penitenciária segrega detentos provisórios com pro­blemas psiquiátricos, a equipe médica não suportou os surtos de André e o mandou para uma ala comum do presídio.

— Eu gosto só de fumar pe­dra. E cocaína e maconha. Fiz pacto com o demônio — diz André. — Todos os psiquiatras me disseram que tenho trans­torno bipolar, seguido de psicopatia — repete o jovem. André não deveria estar pre­so, tanto do ponto de vista legal quanto médico. A Justiça já de­terminou por quatro vezes a ab­solvição do jovem em processos que o acusavam de furto, agres­são e tráfico de pequenas por­ções de droga. O transtorno mental o impedia de ter ciência completa dos atos, conforme laudos médicos corroborados por juizes. Inimputável, André foi absolvido e submetido a me­didas de segurança. Deveria es­tar numa clínica psiquiátrica. Voltou ao presídio por um fla­grante de fúrto.

O rapaz está incluído no Pro­grama de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), que acompanha 240 pessoas em cumprimento de medida de segurança em Goiás. A filosofia do programa da Secretaria de Saúde, considerado modelo no país, é a da não reclusão e do acompanhamento psiquiátri­co contínuo. O projeto falhou e falha com André. Ele fugiu na maioria das sete vezes em que esteve numa clínica psiquiátri­ca. Enclausurar o jovem numa cela, dopá-lo e permitir o con­sumo do crack e da maconha foram as soluções encontradas para a psicose do rapaz.

"FÓSFORO RISCADO NA LÍNGUA"

Quando criança, André come­çou a arrancar todo o cabelo da cabeça para comê-lo. Desen­volveu mania de limpeza: a mãe conta que, uma vez, ele se esfregou por duas horas com uma escova de lavar roupas. André tem "megalomania no­tória" segundo laudos psiquiá­tricos. Aos três anos de idade, foi atropelado por um carro.

— Ele parou de arrancar e comer o cabelo quando come­çou a fumar maconha, aos 12 anos — conta Marilda;

Num dos inúmeros depoi­mentos à polícia, André fez um relato sobre o uso de drogas: "A primeira droga que usei foi um fósforo riscado na língua." Na adolescência, passou por cen­tros de internação para infrato­res. Já adulto, cumpriu quatro anos de prisão, em regimes provisório e fechado, em dife­rentes passagens por presídios. Na maior parte do tempo, já es­tava absolvido pela Justiça.

A mãe desistiu de levar escova de dente, roupas, toalhas e co­mida ao filho, sempre trocados por crack. Marilda não entra mais na cela, desde o dia em que foi agredida dentro do cár­cere. Em 2007, ela denunciou André à polícia por agressão: le­vou uma violenta cabeçada do filho. Naquele mesmo ano, o jo­vem foi acusado de extrair uma tira de lençol da cama de uma clínica, laçá-la por duas vezes no pescoço de um paciente e estrangulá-lo até a morte. Em razão dos transtornos mentais, foi absolvido pela Justiça.

Há muito tempo André não aparece no salão de beleza e na ampla casa da mãe, que fica no andar de cima. A mente do jo­vem produz um emaranhado de frases desconexas e sem sentido, com poucas exceções, entre elas o endereço e os telefones da mãe. Foi a partir das informa­ções fornecidas por André que a reportagem do GLOBO chegou até Marilda. Ela quer a interna­ção compulsória do filho.

Marilda diz que visita André na prisão todo domingo e que o estado do filho é deplorável. Segundo ela, não falta droga dentro do presídio.

— O André troca a comida que eu levo por crack. Já obser­vei um menino puxando a dro­ga com um rodo. Eles mistu­ram maconha com crack, o chamado "jambrado". Ali tudo entra. Uma vez, uma marmita cheia de "pedra" caiu nos pés de um juiz — conta Marilda, que se sente de pés e mãos ata­dos: — Meu filho briga muito. Peço a Deus para protegê-lo.