Título: Cura de bebê pode alterar tratamento
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Fonte: O Globo, 05/03/2013, Ciência, p. 32

Se confirmada eficácia de terapia, Brasil deve adotá-la imediatamente

Aids

O anúncio da cura funcional de um bebê americano infectado pelo vírus da Aids a partir do uso de terapia antirretroviral potente e ministrada logo após o seu nascimento pode, a médio prazo, revolucionar o protocolo de tratamento de recém-nascidos em todo o mundo. Esta, pelo menos, é a opinião de especialistas ouvidos pelo GLOBO. Para eles, uma vez que o feito seja replicado e sua eficácia comprovada, seria uma questão de tempo para se adotar o procedimento. E o Brasil teria condições de oferecer a terapia rapidamente, não só para bebês, mas para adultos sabidamente expostos ao vírus.

No último domingo, na Conferência sobre Retroviroses e Infecções Oportunistas que acontece em Atlanta, nos EUA, especialistas da Johns Hopkins anunciaram que, pela primeira vez, um bebê teria sido curado da infecção pelo HIV. A criança, nascida na zona rural do Mississippi, foi tratada com uma combinação agressiva de medicamentos antirretrovirais cerca de 30 horas após seu nascimento, algo que normalmente não é feito. Os remédios utilizados são bem conhecidos em todo o mundo, apenas a forma de administração foi diferente.

- Os recursos estão disponíveis - afirmou a diretora do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz), Valdiléa Veloso, que está participando do congresso americano onde o trabalho foi apresentado. - Na hora em que se comprovar que a terapia é realmente segura, vai ser muito fácil implementar isso, pelo menos no Brasil.

No Brasil, bebês nascidos de mães soropositivas que não tiveram tratamento antirretroviral durante a gravidez, caso da americana, recebem uma combinação de duas drogas (AZT e nevirapina), ministradas em volumes profiláticos. No caso do estudo americano, foram usadas inicialmente AZT, 3TC e nevirapina em quantidades um pouco mais altas, normalmente indicadas já para o tratamento. Posteriormente, quando a infecção foi confirmada por exames, o bebê passou a receber AZT, 3TC e lopinavir/ritonavir.

- Trata-se de uma esperança bem realista porque é possível de reproduzir, mesmo em países pobres - defende o vice-diretor-geral do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids), o brasileiro Luiz Loures. - Acreditamos que essa forma de transmissão (de mãe pra filho) seja a que estamos mais próximos de zerar, até 2015.

No ano passado, 330 mil crianças foram infectadas pelo HIV, a maior parte delas na África. No Brasil, foram 482 casos. Quando as grávidas soropositivas são tratadas com antirretrovirais adequadamente, o bebê nasce por cesárea e não recebe leite materno, as chances de infecção caem para menos de 1%. No entanto, muitas mulheres não sabem que estão contaminadas. Por isso, o número de infecções ainda é alto, sobretudo onde o pré-natal é mais precário.

- Se conseguirmos repetir a experiência americana de forma controlada, vamos fechar o ciclo de transmissão de mãe para filho - comemora Loures. - Hoje, uma das maiores dificuldades que temos é justamente nesses casos, da mãe infectada que não é diagnosticada, ou que não volta para o tratamento. Então esse resultado nos dá uma grande esperança. Não só nesse sentido, mas também na compreensão da cura da doença de forma geral.

O HIV circula na corrente sanguínea mas também se aloja no interior das células, nos chamados santuários, onde permanece de forma latente. A terapia antirretroviral hoje oferecida impede a replicação no sangue, mas, quando é interrompida, os vírus que se encontram latentes voltam a se replicar. A hipótese levantada pelas especialistas americanas é de que como a droga foi ministrada muito precocemente e de forma agressiva, o medicamento teria acabado com o vírus antes que ele chegasse a se "esconder" nos santuários ou reservatórios.

- Eu achei que o bebê tinha um risco acima do normal de ter sido infectado e, por isso, tentei fazer o melhor possível - justificou a pediatra Hannah Gay, que atendeu a criança.

Constatação foi por acaso

A constatação de que o bebê tinha sido curado foi feita por puro acaso. A criança ficou em tratamento por 18 meses, mas, então, deixou de frequentar o centro. Só retornou cinco meses depois. Testada, apresentou um resultado negativo para o HIV.

A criança hoje está com mais de dois anos e continua apresentando resultado negativo, embora ainda esteja em observação.

- Isso aconteceu por acaso, porque nenhum médico teria suspendido o tratamento dela - explicou Valdiléa. - Então, temos agora que voltar aos nossos estudos e fazer novos testes para buscar por situações como essa. E observar para ver se esse vírus está escondido em algum lugar e se, por alguma razão, pode voltar a se replicar.

Para Loures, o feito das americanas pode ser o primeiro passo para uma geração livre da Aids.

- Se conseguirmos replicar o resultado, é o começo de toda uma geração nascida sem o vírus HIV - afirmou.