Título: Relações tensas com a casa rosada
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 14/03/2013, Especial, p. 5

Cristina Kirchner manifestou ontem sua "consideração e respeito" ao arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, por ter sido eleito Papa. Os atritos, públicos e privados, passaram a ser coisa do passado. Segundo admitiu o biógrafo do novo Papa, o jornalista argentino Sergio Rubin, "o relacionamento entre Bergoglio e Cristina sempre esteve marcado pela tensão e distância entre ambos". Ontem, porém, a presidente iniciou uma nova etapa e foi uma das primeiras em confirmar sua presença na cerimônia de posse de Francisco, a quem desejou, em carta divulgada pela Casa Rosada, "que tenha, ao assumir a condução e guia da Igreja, uma frutífera tarefa pastoral desempenhando tão grandes responsabilidades em defesa da justiça, igualdade, fraternidade e paz".

Nas ruas de Buenos Aires e de muitas cidades argentinas, a escolha de Bergoglio foi recebida com emoção. Ninguém esperava um Papa argentino e até mesmo os enviados especiais de canais de TV locais manifestaram total surpresa quando o nome de Jorge Bergoglio foi confirmado. Na Casa Rosada, segundo fontes do governo argentino, ninguém imaginou que o arcebispo da capital argentina, considerado quase um adversário pelos Kirchner nos últimos anos, seria o sucessor de Bento XVI. Quando o nome de Bergoglio foi confirmado, a decisão foi respaldar o novo Papa, evitando mencionar conflitos passados.

Até mesmo kirchneristas verborrágicos, como o senador Aníbal Fernández, ex-chefe de Gabinete de Cristina, que não costuma ser diplomático em suas declarações, optou pela cautela:

- Que Deus e a Virgem Maria iluminem o novo Papa para que ele possa administrar a Igreja Católica num mundo conturbado.

Bergoglio recebeu elogios e saudações de políticos dos principais partidos argentinos. Desde o deputado e cineasta Fernando "Pino" Solanas, do esquerdista Projeto Sul, ao também deputado Ricardo Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR). O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, do direitista Pro, também parabenizou o novo Papa e disse, pelo Twitter, estar feliz pela notícia.

Nas redes sociais, não faltaram as piadinhas sobre a eterna rivalidade entre Brasil e Argentina. "Deus é argentino (em referência a Maradona), faltava apenas um Papa e ganhar a Copa no Brasil", alfinetou um internauta argentino. Nesse clima de comemoração, o governo Kirchner preferiu omitir qualquer opinião que pudesse contrastar com a alegria de milhões de argentinos.

- Ninguém desconhece que o kirchnerismo nunca teve boa relação com Bergoglio, mas hoje parece que o clima é outro - afirmou Rubin, enviado pelo jornal "Clarín" a Roma.

embate público sobre casamento gay

As divergências entre Bergoglio e os Kirchner começaram pouco depois da vitória do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007). Como lembrou o ex-chefe de Gabinete Alberto Fernández, o ex-presidente sempre considerou as declarações de Bergoglio sobre corrupção e falta de transparência dos poderes públicos como "um ataque direto ao governo". As opiniões do arcebispo portenho sobre o aumento da pobreza no país também incomodavam a Casa Rosada.

- Kirchner sentia que Bergoglio nos criticava e eu sempre lhe dizia que Bergoglio falava sobre o sistema político em geral e que não era nosso inimigo - disse Fernández ao GLOBO.

A Casa Rosada e o arcebispo de Buenos Aires protagonizaram alguns embates públicos, entre outros motivos pela lei que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aprovada pelo Congresso em 2010. À época, Bergoglio assegurou que se tratava de "uma jogada do diabo" que, segundo ele, "podia ferir gravemente a família". A resposta de Kirchner foi enfática:

- A Argentina deve abandonar, definitivamente, as visões discriminatórias e escuras do passado.

Na ocasião, Cristina disse que Bergoglio comandava uma campanha similar às dos tempos medievais e da Inquisição. De acordo com o ex-chefe de Gabinete dos Kirchner, a presidente sempre desconfiou de Bergoglio pelas versões sobre sua suposta colaboração com os militares durante a última ditadura (1976-1983).

- Cristina crê que Bergoglio teve participação em violações dos direitos humanos e isso a distanciou dele - assegurou Fernández.