Título: Cristina busca enterrar tensões do passado com Papa
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 19/03/2013, Mundo, p. 27

Como esperava a Casa Rosada, o primeiro encontro entre a presidente Cristina Kirchner e o Papa Francisco, que a recebeu ontem para um almoço tête-à-tête na Casa Santa Marta, no Vaticano, deixou claro que o governo argentino quer esquecer as tensões do passado e começar de novo. A presidente, primeira chefe de Estado recebida pelo novo Papa, mostrou-se bem-humorada e comovida pela acolhida de Francisco, até pouco tempo atrás o cardeal Jorge Bergoglio, considerado um adversário político pelos kirchneristas. Decidida a torná-lo, agora que é Papa, um aliado de seu governo, a presidente aproveitou a reunião para pedir a Francisco sua intermediação no conflito com o Reino Unido pela soberania das Ilhas Malvinas.

- Solicitei sua intervenção para alcançar o diálogo (com o governo britânico) na questão Malvinas - contou Cristina.

A presidente lembrou que, em 1981, a mediação do Papa João Paulo II impediu uma guerra entre a Argentina e o Chile pelo Canal de Beagle.

- Hoje temos uma oportunidade histórica mais favorável, dois governos eleitos democraticamente, não há perigo bélico, apesar da militarização da região pelo governo britânico - assegurou Cristina.

A chefe de Estado, que hoje terá um lugar privilegiado na cerimônia de entronização do novo Papa, voltou a defender o cumprimento "das resoluções das Nações Unidas sobre a questão das Malvinas". No ano passado, Bergoglio disse, em missa dedicada às vítimas da guerra, 30 anos depois do conflito, que as Malvinas foram "usurpadas" pelos britânicos. Após sua escolha como sucessor de Bento XVI, o premier britânico, David Cameron, disse estar em "respeitoso desacordo" com o novo Papa.

Diante das câmeras de TV, Cristina e Francisco conversaram num clima de total cordialidade. Não foram divulgadas imagens do almoço, mas, segundo a presidente, ambos tiveram um "diálogo frutífero". Primeiro houve uma troca de presentes e algumas gracinhas da presidente:

- Posso tocá-lo? Nunca antes um Papa tinha me beijado - desmanchou-se.

Cristina parecia um pouco nervosa. Já Francisco, segundo a própria presidente admitiu, esteve o tempo todo "tranquilo, sereno, em paz". Já a agência estatal argentina Télam informou que o encontro durou mais de duas horas em clima de "harmonia, respeito e emoção".

Cristina e Francisco trocaram presentes. A presidente entregou um equipamento completo para o consumo de chá-mate, hábito característico dos argentinos, e um poncho "para que se proteja do frio europeu". Já o Papa deu à mandatária um livro da Conferência Episcopal Latino-Americana, um mosaico da fundação da Basílica de São Pedro e uma rosa branca em menção a Santa Teresinha, a preferida do Pontífice.

- Gostei desse gesto porque ressalta um de seus traços característicos, a simplicidade - disse a presidente.

Quando Bergoglio era o cardeal mais importante da Argentina, o relacionamento entre ambos nunca foi fácil. Para Néstor e Cristina Kirchner, as declarações do prelado sobre aumento da pobreza, corrupção e outras questões sensíveis eram recebidas como um ataque a seus governos. Já o então arcebispo, segundo revelaram antigos colaboradores, sempre pensou que os Kirchner estavam por trás das denúncias de sua suposta colaboração com os militares na última ditadura (1976-1983).

Convite para visitar a argentiNA

Ontem, no dia do histórico encontro, o jornal "El Cronista" informou que, na véspera do conclave, foi distribuído em Roma um dossiê sobre o passado do novo Papa, elaborado com base nas investigações do jornalista Horacio Verbitsky, colunista do "Página 12" com forte vínculo com os Kirchner. O jornal dá a entender que o documento foi entregue pelo embaixador argentino. O dossiê, de acordo com a mesma fonte, incluía denúncias sobre suposta participação de Bergoglio no sequestro de padres jesuítas. Nos últimos dias, personalidades importantes da área de direitos humanos, como o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, negaram que Bergoglio tenha sido cúmplice da ditadura.

Tentando mostrar-se alheia a uma cruzada liderada por setores radicais do kirchnerismo, Cristina buscou aproximar-se do novo Papa e confirmou um convite para que visite a Argentina em julho, após a Jornada Mundial da Juventude, no Brasil.

- Ele ficou de olhar a agenda - afirmou ela.