Título: Prédios voltam a abrir as janelas
Autor: Araújo, Vera
Fonte: O Globo, 24/03/2013, Rio, p. 16

Levantamento mostra que mais de cem mil disparos deixaram de ser feitos pela PM em 4 regiões com UPPs

Convivência. Prédios da Rua Raul Pompéia, em Copacabana, colados ao Pavão-Pavãozinho: a pacificação trouxe de volta a tranquilidade

Adeus às balas

Até 2008, o conjunto de seis blocos da Rua Santa Clara 431, em Copacabana, era conhecido como Condomínio do Medo. Os edifícios ficavam na linha de tiro nos confrontos entre traficantes da Ladeira dos Tabajaras e a polícia. Em 2009, com o início da pacificação das favelas da região, o quadro mudou. Hoje, moradores se referem ao condomínio pelo nome verdadeiro: Mirante de Copacabana, bairro onde a Polícia Militar não disparou sequer um tiro em 2012.

Para especialistas, este é um dos reflexos da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), iniciada em 2008. Desde então, os batalhões da PM responsáveis pelo policiamento em Copacabana e nas regiões de Botafogo, Olaria e Grande Tijuca reduziram vertiginosamente o uso de munição por suas tropas: 100.430 balas deixaram de ser disparadas, de acordo com levantamento feito pela corporação a pedido da Secretaria de Segurança. Desse total, 74.782 são de fuzil.

O Complexo do Alemão, que já foi considerado uma das mais violentas regiões da cidade, também se beneficiou desses bons ventos. Em 2010, antes da ocupação do Alemão, foram registrados 23.335 disparos feitos por armas da PM. No ano seguinte, já se percebia o resultado do processo de retomada do território pelo Estado: a PM gastou 4.244 balas. Em 2012, a queda continuou: 2.395 tiros foram disparados. Em dois anos, levando-se em conta o número de disparos feitos no ano anterior à pacificação do Alemão, os policiais militares do batalhão de Olaria deixaram de fazer 40.031 tiros.

Os números envolvendo balas perdidas também refletem a redução de disparos nas ruas. Em 2008, 181 pessoas foram atingidas na capital, e no ano passado, 35. Ou seja: 81% a menos, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).

As paredes com tijolo maciço e as placas de ferros que ocupavam os vãos dos aparelhos de ar-condicionado do apartamento da psicóloga Maria Estela do Amaral, no ex-Condomínio do Medo, foram removidos após a implantação UPP da Ladeira dos Tabajaras e do Morro dos Cabritos, em dezembro de 2009. No lugar delas, foram colocadas janelas. O bunker havia sido montado no final da década de 1980, quando um tiro de fuzil AR-15 atravessou o ar-condicionado, atingindo a filha da moradora, Heloísa, então com 16 anos. Naquela época, a guerra do tráfico era travada a 500 metros do seu imóvel.

- Após o ocorrido, eu resolvi tapar todos os buracos, blindar as paredes. Eu morria de medo de que algo acontecesse novamente. Mas hoje, é a vida que segue. Tudo foi retirado, assim que a UPP estava para chegar por aqui. Atualmente, vivo com a minha janela aberta. Existe uma paz, uma tranquilidade que não existia antes. Só tenho receio de que, depois de 2016, o tráfico volte para cá - afirma Maria Estela.

Em 2008, às vésperas da inauguração da UPP de Copacabana, houve 2.012 disparos de arma de fogo da PM, sendo que 983 partiram de fuzis.

A síndica do Mirante de Copacabana, Maria Beatriz, lembra que, na década de 1990, a região era considerada tão violenta que o valor dos imóveis e dos aluguéis caiu à metade. Houve um êxodo de moradores.

- A gente não podia aproveitar as áreas de lazer, como a piscina. Todos tinham medo de vir morar aqui. Hoje, antigos moradores estão voltando, e os apartamentos estão muito valorizados. Se antes o valor de venda era de R$ 500 mil, hoje está em torno de R$ 1,2 milhão - conta a síndica, que mora lá há quase 30 anos.

O ator Gustavo Ferreira Rizzoti, de 42 anos, morador de classe média da Ladeira dos Tabajaras há quatro anos, ressalta que o lugar ganhou novos ares:

- A mudança está no ar, no rosto das pessoas. É impressionante. Vejo um semblante mais tranquilo de quem anda pela ladeira, independente da classe social. Já ouvi muito tiro daqui de casa. Agora só ouço o canto dos pássaros.

Embora tenha mudado para o morro depois da pacificação, a lavadeira Bernadete Raimundo dos Santos diz que sabia da violência pelos jornais:

- As pessoas comentam bastante que a situação por aqui melhorou. Até o comportamento das pessoas está diferente. Elas estão mais calmas, cumprimentam sem medo, dão bom dia e boa tarde.

O efeito UPP se refletiu em bairros vizinhos, como Ipanema. Quem mora nos fundos do número 4 da Rua Nascimento e Silva, que dá para o Pavão-Pavãozinho/Cantagalo, se sente como se estivesse dentro da favela. Thereza Marques ressalta que, depois da UPP, não precisa mais dormir no corredor por causa dos tiroteios.

O neurocirurgião Ivan Sant"Ana, que trabalha nos hospitais do Andaraí e Miguel Couto, no Leblon, percebe no seu dia a dia a redução dos baleados, principalmente vítimas de tiros de fuzil:

- Antes da pacificação, cheguei a atender, num dia de domingo, no Andaraí, até 10 baleados, entre traficantes e pessoas feridas por balas perdidas. Não vejo mais isso, nem lá, nem no Miguel Couto. Agora só tem feridos de acidente de trânsito.

"A polícia não muda completamente"

Para o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, responsável pelo pedido da pesquisa à PM, a redução da munição usada só confirmou o que ele já sabia:

- Uma cidade que vivia a lógica da guerra vai ter um paiol cheio de munição. O fim dos confrontos vai mudando as prioridades da polícia e isso já aparece nas auditorias. Como é um processo, ainda não vamos encontrar esse perfil em todos os batalhões, é claro, mas é um caminho a seguir.

O coordenador do Centro de Pesquisas de Segurança da PUC Minas Gerais, Luís Flávio Sapori, aponta a retomada de território como crucial para a redução do uso de armas de fogo. Segundo ele, isso mostra que a política do confronto "era burra, equivocada, além de ser desrespeitosa com os direitos humanos de quem vive nas favelas e em seu entorno".

Já o antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC Paulo Jorge Ribeiro afirma que a pesquisa da PM revela que, nos locais onde o poder econômico é menor, a redução do uso do fuzil também é pequena.

E para o coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos Políticos, Roberto Kant de Lima, o grande desafio da pacificação será administrar os conflitos cotidianos sem o uso do fuzil:

- A gente sabe que a violência da polícia atravessou décadas. O armamento pesado era usado por ela de forma afrontosa. Agora, a polícia não combativa faz com que o nível de violência caia. Mas, apesar de isso ocorrer em áreas de UPP, onde há a ocupação territorial, em outros pontos da cidade, ainda predomina a força do fuzil. A polícia não muda completamente.