Título: O joio e o trigo
Autor: Sangari, Ben
Fonte: Correio Braziliense, 26/10/2009, Opinião, p. 15

Físico, é presidente da Sangari Brasil

O adiamento da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, em função do vazamento de algumas provas, em nada invalida a proposta do Ministério da Educação de o exame servir também como forma de seleção unificada nas universidades públicas federais. Se o calendário deste ano impossibilitar a algumas delas a adoção das notas do Enem para ingresso em seus cursos, nada deveria impedir que isso ocorresse no próximo ano ou nos subsequentes. O atraso na aplicação do Enem em 2009 não pode representar também atraso no processo de substituição de um modelo anacrônico de avaliação de estudantes, como o vestibular.

A adoção do Enem como processo seletivo das universidades obedece a uma lógica que transcende a logística de distribuição das provas. Se houve falha na segurança da logística, não há por que duvidar da validade da lógica. A reformulação do Enem ¿ criado em 1998 para avaliar o desempenho do estudante ao final de sua formação básica ¿ tem entre seus principais objetivos a reestruturação dos currículos do ensino médio. Não se trata, portanto, de trocar seis por meia dúzia, mas de induzir nova maneira de enxergar o processo de ensino e aprendizagem de crianças e adolescentes.

A lógica do MEC faz sentido na medida em que ataca o problema da má qualidade da educação brasileira nas duas extremidades: de um lado, induz à reformulação dos currículos ¿ o que permite avançar em relação a um modelo obsoleto de ensino e aprendizagem ¿ e, de outro, propõe o abandono de um método também obsoleto de avaliação. Cabe lembrar que a iniciativa do MEC tem em vista todo o país e não apenas algumas universidades, que já realizam avaliações mais adequadas à atualidade.

O fato é que a sociedade já mudou. Suas demandas são outras. A escola é que não está conseguindo acompanhar a revolução em curso, fora de seus muros. Permanece presa ao modelo educativo que servia à era industrial, e esta já deu lugar à era do conhecimento. Nos últimos 100 anos, incontáveis mudanças efetuaram-se em diversas áreas. Diferentemente, o modelo educacional avança a passos lentos, quando avança.

Pode-se fazer uma experiência, uma espécie de brincadeira: imaginar uma viagem ao passado, talvez ao século 18, em uma máquina do tempo. Ao desembarcar, imediatamente o viajante reconheceria uma escola. Não encontraria computadores, telefones celulares, automóveis, shopping centers. Mas a escola seria de fácil identificação, pois ela mudou muito pouco em séculos. Houve revolução em diversos segmentos, menos na educação. Não é de se espantar, portanto, que a escola de hoje esteja ¿ quando muito ¿ a reboque das mudanças por que passa o mundo. À frente do tempo, nem pensar.

O que o novo Enem pode favorecer é justamente essa perspectiva de educação mais aberta às mudanças pelas quais passa o mundo. Estimular a reflexão, a investigação, a descoberta, a invenção é preparar crianças para adolescência mais rica, e adolescentes para o desafio da constante construção do conhecimento, no ensino superior e na vida. O que a maioria dos estudantes enfrenta hoje é um abismo entre duas realidades completamente distintas, às vezes antagônicas: o ensino pré-vestibular e a universidade. Sair de um e ingressar em outra representa, muitas vezes, uma ruptura. Em questão de meses, o estudante que memorizou impressionante quantidade de informação para sair-se bem em meia dúzia de provas já se esqueceu de grande parte do que ¿aprendeu¿.

Ou o ensino se volta para a relevância do conhecimento no cotidiano dos estudantes ou a escola permanecerá presa ao passado, incompatível com a realidade das ruas e do mercado de trabalho, desconectada da instigante perspectiva científica e tecnológica do século 21 e, por conseguinte, desinteressante. O novo Enem configura-se como mais uma oportunidade para se repensar o atual método de ensino e aprendizagem, que privilegia o bombardeio e a subsequente memorização de informação e ignora o pensamento crítico e formulador. À medida que formas mais democráticas de governo se impõem, menos sentido faz uma escola autoritária, que sobrevaloriza o ato de dar respostas em detrimento do ato de fazer perguntas. Não se geram ciência, filosofia, arte ¿ conhecimento algum, enfim ¿ sem a prática saudável da indagação e a consequente busca por respostas, convencionais ou não. E isso deveria valer, sobretudo, para as questões pedagógicas.