Título: Cartórios facilitam golpe contra consumidores
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 06/04/2013, País, p. 10

Empresas de cobrança protestam cheques frios para sujar nome de devedores e depois achacá-los

A dispensa do pagamento antecipado de custas, praticado desde o fim do ano passado pelos tabelionatos de protesto de títulos do Rio, abriu caminho para cobranças abusivas contra emitentes de cheque sem fundo. Favorecidas por uma brecha legal, empresas de cobrança e de factoring (compra de créditos futuros) movimentam essa indústria do achaque com cheques comprados no mercado paralelo, muitos deles prescritos (fora da validade), extraviados ou roubados. Com o protesto, o nome do devedor é automaticamente lançado nos cadastros de inadimplência.

A brecha para o golpe foi aberta pela Lei estadual n° 6.370, aprovada em dezembro de 2012 para favorecer o credor de cheques sem fundo de pequeno valor, que preferiam guardá-los na gaveta a pagar os custos cartoriais para protestá-los. Com a lei, o pagamento das taxas foi transferido para o devedor, no ato de cancelamento do protesto. Na prática, porém, os principais beneficiados foram as empresas de cobrança, que compram, com deságio, cheques dos credores desiludidos e os apresentam para protesto a custo zero.

Os cartórios de protesto, também favorecidos com o aumento da clientela, alegam impedimento legal para verificar a procedência dos cheques. Qualquer empresa pode requerer a dispensa do pagamento de custas, desde que celebre convênio com o Instituto de Estudos de Protesto do Brasil (Seção RJ). A lista de conveniadas é dominada por empresas de cobrança e de factoring, a maioria delas ré em processos de danos morais movidos por consumidores lesados.

- Emprestei um cheque de R$ 40 a uma pessoa em 1996, mas só agora descobri que o meu nome está sujo. Não sei quem procuro para resgatá-lo, mas o cartório está cobrando R$ 103 para cancelar o protesto. Como sou pobre, procurei a Defensoria Pública - lamentou uma cozinheira carioca, que estava essa semana no guichê do 2º Tabelionato, mas preferiu não se identificar.

A coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria, Alessandra Bentes, disse que a maioria dos lesados que procuram o serviço pertence a faixas de baixa renda. Em um ano, a unidade ajuizou cerca de 80 casos, mas ela garante que o número não expressa o tamanho do problema, mais amplo.

A mesma situação foi detectada em São Paulo, onde a Corregedoria Geral de Justiça agiu rapidamente para coibi-la. Para evitar o protesto de má fé, exige agora que o credor apresente ao tabelionato de protesto uma declaração da instituição bancária, com o endereço do devedor e outros dados da conta. A norma criou uma blindagem contra o uso do cheque frio como instrumento de achaque. No Rio, onde não há filtros, as únicas saídas para o devedor são recursos judiciais, que podem se arrastar por anos, ou ceder à pressão, pagando o valor do cheque e as custas cartoriais.

A Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa fluminense, na época presidida por Cidinha Campos, ajuizou ação na 2º Vara Empresarial para impedir o Serasa de incluir em seu cadastros de restrição de crédito cidadãos com títulos protestados indevidamente. A juíza Márcia Cunha, ao acolher o pedido, alegou que a ré abusava do direito de manter um cadastro de maus pagadores com nomes que não deviam ali estar, mas o Serasa e outras entidades recorreram da decisão.

Falta de transparência

Desde domingo passado, O GLOBO publica série de reportagens sobre os cartórios extrajudiciais do Brasil. Falta de transparência, cobranças abusivas, fraudes fundiárias e cartórios biônicos estão entre os problemas mostrados. O corregedor geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Francisco Falcão, defendeu uma operação da Receita Federal com foco no faturamento dos tabeliães. Somente os cartórios de São Paulo e Rio de Janeiro ganharam, no ano passado, quase R$ 5 milhões.

O ministro, no fim de março, fixou um prazo para que 14 tribunais de Justiça brasileiros promovam concurso público para o preenchimento de vagas nos cartórios. De acordo com o CNJ, 2.200 ofícios do país ainda são ocupados por tabeliães biônicos.