Título: Decisão para a história
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 25/10/2009, Mundo, p. 26

Ex-guerrilheiro que passou 15 anos na prisão é favorito para chegar ao poder pelo voto. José ¿Pepe¿ Mujica aponta Lula como seu exemplo e critica o ¿socialismo bolivariano¿ de Hugo Chávez e Evo Morales

Os uruguaios vão hoje às urnas escolher o presidente da República e renovar todas as cadeiras da Câmara dos Deputados e do Senado. Na corrida para a presidência, o senador e ex-guerrilheiro tupamaro José ¿Pepe¿ Mujica, 74 anos, sai na frente do advogado neoliberal e ex-presidente (1990-1995) Luis Lacalle, 68 anos. As últimas pesquisas, divulgadas na quinta-feira, deram vitória entre 45% e 49% para Mujica, candidato da governista Frente Ampla. Lacalle, do Partido Nacional, ficou entre 29% e 32%. Em terceiro lugar, com 15%, está Pedro Bordaberry, do Partido Colorado.

Para evitar um segundo turno, Mujica terá de conseguir 50% dos votos mais um. O jornalista uruguaio Aureliano Rodríguez Larreta reclama do sistema, que considera antidemocrático. ¿Em qualquer parte do mundo, um partido e um candidato que reúnam entre 40% e 45% do voto popular estão perfeitamente habilitados para governar, com apoio parlamentar¿, diz ao Correio. Mujica passou as últimas semanas percorrendo o interior do país para convencer os indecisos, que representam 7% a 10% dos eleitores. ¿São pessoas que têm pouco interesse pela política, que se definem como de centro e se concentram fora da capital. E são mais mulheres do que homens¿, caracteriza o sociólogo Eduardo Bottinelli, da consultoria Factum.

O Partido Nacional intensificou a campanha tentando demonstrar que a Frente Ampla, do presidente Tabaré Vázquez, não será a mesma sob um governo de Mujica . ¿A oposição tenta identificar o candidato como alguém próximo ao presidente boliviano, Evo Morales, e ao venezuelano, Hugo Chávez, e que tentaria mudar a Constituição para mexer na propriedade privada¿, afirmou à reportagem o cientista político uruguaio Antonio Cardarello. Para ele, o fato de Mujica ter sido um guerrilheiro não afeta negativamente sua campanha. ¿Isso foi falado em 2004, quando ele foi o senador mais votado. Agora quase ninguém acredita que Mujica possa voltar às pretensões revolucionárias que teve no fim dos anos 1960 e no começo dos 1970. O que mais se critica é sua imprevisibilidade¿, diz Cardarello. Para contornar a crítica e dar sinais claros de que seu governo não terá nada de radical, Mujica escolheu como vice o ex-ministro da Economia de Vázquez, Danilo Astori, que continuará como principal responsável pela política econômica do país.

Assim como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva antes de conquistar seu primeiro mandato, Mujica enfrenta o desafio de ¿vencer o medo¿ da classe empresarial e dos grandes fazendeiros. ¿No entanto, Mujica se destacou na eleição passada por ter uma boa relação com as agremiações rurais, muito boa capacidade de diálogo. Ele se encarregou de repetir, nesse período final de campanha, a linha do presidente Vázquez de que a revolução é uma utopia que está longe de se concretizar, e que é preciso trabalhar dentro dos limites do capitalismo¿, explica Cardarello.

Modelos Mujica tem declarado publicamente que seus modelos são Lula e a presidenta chilena, Michelle Bachelet. Em entrevista ao semanário Búsqueda, Mujica diz que os líderes do bloco bolivariano, como Chávez e Morales, ¿estão lutando por coisas importantes¿. Garante que ¿quer ser amigo de toda essa gente¿, mas ressalta que não segue a mesma linha. ¿Eu disse ao Chávez: você não constrói nenhum socialismo com isso, mas muita burocracia¿, argumenta o candidato. E completa: ¿Meu modelo é Lula, porque usa essa metodologia de colocar no centro a negociação política permanente. E eu não quero atomizar o país¿.

Quando o assunto é Mercosul, Mujica pode ser melhor parceiro que o ex-presidente Lacalle. ¿Mujica tem uma visão bastante pragmática. Ele quer ter boa relação com o Mercosul, ao contrário de seu principal opositor, que quer que o bloco se limite a ser um espaço de intercâmbio econômico¿, afirma Cardarello. O ex-guerrilheiro, além de aprofundar o Mercosul, não descarta a importância, para um país pequeno e agroexportador, como o Uruguai, de diversificar a pauta de exportações por meio de acordos bilaterais. Nas palavras de Mujica, ¿em vez de vender muito para poucos, vender pouco para muitos¿.

Eu disse ao Chávez: você não constrói nenhum socialismo com isso, mas muita burocracia

José Mujica, candidato à presidência

Perfil/José Mujica Um Che veterano

José ¿Pepe¿ Alberto Mujica Cordano arrecadou dinheiro para o ¿Pepemóvel¿, carro com o qual percorreu o Uruguai em campanha eleitoral, num churrasco em sua chácara, para o qual cobrou US$ 200 por convidado. Se conquistar a presidência, ele diz que quer continuar morando no mesmo lugar, na zona oeste de Montevidéu. Mas promete deixar a moto e ir ao palácio de carro, porque já está ¿muito veterano¿.

Mujica nasceu em 20 de maio de 1934, na capital uruguaia. Tem o carisma de um senhor bonachão e o passado de um Che Guevara. Só em 2005 decidiu casar-se de papel passado com a senadora Lucía Topolansky, com quem vive desde que a conheceu no Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), em 1967 ¿ o ano da morte de Guevara.

Os dois jovens participaram do grupo armado, lançado em 1963, com assaltos a bancos e outros atos violentos de militância política. Na lógica dos jovens tupamaros, essa era a resposta a uma série de confrontos entre grupos de esquerda e ultradireita. O MLN-T identificou -se com a Revolução Cubana de 1959, mas se organizou como um grupo guerrilheiro, em princípio sem vínculos com nenhum partido político. Por essa atividade, Mujica foi preso e passou 14 anos em diversas unidades militares, formando parte do grupo conhecido como ¿os reféns¿. ¿Do que me arrependo, da luta armada, é que este povo engoliu 16 anos de ditadura e não a pudemos tirar a patadas¿, diz Mujica hoje, aos 75 anos.

Em 1985, com a volta da democracia, ele saiu da prisão e recebeu o benefício da anistia. Depois de alguns anos de política institucional, fundou com outros camaradas ex-tupamaros o Movimento de Participação (MPP), dentro da Frente Ampla. Nas eleições de 1994, elegeu-se deputado. Cinco anos depois, saiu das urnas como o senador mais votado, com 300 mil votos. Em 1º de março de 2005, o presidente Tabaré Vázquez nomeou-o ministro de Pecuária, Agricultura e Pesca. Em 2008, abandonou o cargo para voltar ao Senado. Em dezembro de 2008, foi escolhido como candidato da Frente Ampla à sucessão de Vázquez. ¿Vou tratar de dar bola aos que discordam. Se a democracia existe, a forma que melhor a representa é a orelha, não a língua. Passo muito tempo escutando gente por aí, por qualquer lado¿, assegura Mujica. (VV)

Democracia pelo selo

O Uruguai tem 3 milhões de cidadãos, mas cerca de 400 mil vivem fora do país. Em um dos dois plebiscitos marcados para hoje, paralelos às eleições, o país pode se tornar a 14ª nação latino-americana a permitir o voto pelo correio, a partir de 2014. Atualmente, só podem votar os emigrantes que retornarem ao país no dia da eleição.

O senador e ex-guerrilheiro José ¿Pepe¿ Mujica fez muita campanha dirigida aos emigrantes, principalmente na Argentina, onde é maior a chance de que os uruguaios residentes se animem a viajar para votar. ¿É parte de sua estratégia com os Kirchner. Enquanto Tabaré Vázquez teve uma relação bastante tensa, devido à polêmica fábrica de celulose na fronteira, Mujica fez visitas frequentes e obteve da presidenta Cristina uma folga de quatro dias para os uruguaios residentes¿, disse o analista político Antonio Cardarello. Já o empresário Juan Carlos López Mena, dono de uma frota de catamarãs, anunciou preços preferenciais para os eleitores que viajarem a Montevidéu.

O empresário uruguaio Julio Ayala, 48 anos, vive no Brasil há 30. Ele recebeu o plebiscito com entusiasmo. ¿Uma grande massa de uruguaios emigrou desde os anos 1970. Nós nos identificamos muito com o local que escolhemos para viver, mas sempre existe aquele elo com o país de origem¿, disse ao Correio. Ele faz parte do 20º departamento (estado) do país, formado pelos uruguaios que moram no exterior. Julio acredita que o voto pelo correio deve ser aprovado, já que muitas famílias têm alguém que vive fora do Uruguai.

Anistia No entanto, Julio não tem a mesma certeza sobre a lei de caducidade, que deu anistia aos crimes cometidos durante a ditadura ¿ a outra consulta que será realizada hoje. ¿É preciso colocar pontos finais. Não se avança ao se agarrar a situações do passado. Tem de existir um acordo geral para virar a página, ou melhor, as páginas, porque na verdade são várias. Eu sou a favor de que não se anule a lei.¿ Por outro lado, o jornalista Aureliano Rodríguez Larreta, residente em Pelotas (RS), acredita que a anistia foi uma ¿aberração jurídica, produto da prepotência militar no primeiro período da restauração democrática¿. ¿A sociedade civil propôs uma reforma constitucional para `anular¿ a lei, questão que juridicamente pode parecer um disparate devido aos possíveis efeitos retroativos, mas que na verdade não deverá produzir nenhum caos judiciário, porque a maior parte dos crimes mais graves já foram investigados e julgados. Mas se estivesse perante a urna, votaria por sua anulação¿, disse. (VV)