Título: Dois anos longe da meta
Autor: Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 31/10/2009, Economia, p. 16

Brasil experimentará, este ano, o primeiro fracasso do atual regime fiscal. Para 2010, há sinais de que também vai ficar distante do objetivo. Por isso, o risco de inflação começa a existir

Apesar de todas as manobras realizadas pelo governo para tentar manter o equilíbrio de suas contas, dificilmente o setor público (União, estados, municípios e estatais) conseguirá cumprir a meta de superávit primário deste ano, de 1,56% do Produto Interno Bruto (PIB). A se confirmar o que o mercado dá como certo, será o primeiro fracasso do regime fiscal implantado no Brasil em 1999. Também para 2010, a maioria dos analistas duvida da capacidade do setor público de economizar 3,3% do PIB para pagar juros, mesmo que o governo recorra ao Fundo Soberano(1), no qual estão depositados R$ 16 bilhões. Esse, segundo o chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, será o preço de se evitar um processo de recessão mais prolongado do país.

A aposta do mercado de que o cumprimento da meta de superávit deste ano se tornou uma miragem consolidou-se ontem, depois da confirmação pelo BC de que, em setembro, o setor público registrou rombo de R$ 5,763 bilhões. Foi o pior resultado para este mês desde 2001, início da série histórica que já leva em conta a exclusão da Petrobras do ajuste fiscal. Como não conseguiu economizar nada, o déficit nominal, que inclui os juros da dívida, de R$ 16,6 bilhões, disparou para R$ 22,4 bilhões, quase triplicando em relação a agosto (R$ 8,1 bilhões). Esse buraco também é recorde para meses de setembro.

¿São esses números que têm levado o mercado a apostar na alta da taxa básica de juros (Selic) em 2010¿, disse o economista Carlos Thadeu de Freitas Gomes, ex-diretor da Dívida Pública do BC. ¿Mas não dá para dizer que há descontrole. No quadro atual, em que muitos países recorreram a políticas anticíclicas para minimizar os estragos da crise, um superávit, mesmo que mínimo, é positivo¿, assinalou. O problema, no entender de Caio Megale, economista-chefe da Mauá Sekular Investimentos, é que a deterioração das contas públicas não se deu por causa de políticas anticíclicas, temporárias, mas pela contratação de gastos permanentes, como o aumento de servidores, que pesarão ao longo de anos.

Risco de inflação

Para Megale, o governo tem que sair da economia o mais rápido possível, para que o crescimento seja comandando pelo setor privado, ponto crucial para que não haja pressões inflacionárias e nem aumento dos juros em 2010. ¿Está nas mãos do governo decidir se haverá ou não elevação da Selic no próximo ano. Se realmente conseguir controlar gastos e usar o aumento de receitas, fruto do crescimento maior da economia, para ampliar o superávit, evitará que o BC aumente a taxa básica¿, destacou. Mantida, porém, a fragilidade do ajuste fiscal, o economista da Mauá prevê alta dos juros a partir de março.

Os analistas lembram que as manobras do governo para reduzir as metas de superávit primário começaram no auge do estouro da crise mundial, no fim do ano passado. Primeiro, excluíram a Petrobras do cálculo, o que derrubou o objetivo de 3,5% para 3,3%, com possibilidade de desconto do Projeto Piloto de Investimentos (PPI), de 0,5% do PIB. Depois, a meta oficial baixou para 2,5%. Ciente de que esse patamar de economia para o pagamento de juros da dívida era elevadíssimo em um quadro de arrecadação deprimida, o governo ampliou o abatimento. O PPI passou a incluir obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Minha Casa, Minha Vida. Ou seja, o desconto do superávit subiu para 0,94% do PIB, com a meta deste caindo para 1,56%.

¿Com tudo isso, essa meta não será alcançada¿, assegurou Freitas Gomes. No acumulado entre janeiro e setembro, o superávit primário somou R$ 37,7 bilhões, o menor da série histórica, equivalente a 1,70% do PIB. Em 12 meses, o superávit cravou R$ 34,6 bilhões, ou 1,17% do Produto, ambos os números, os mais baixos já computados desde 2001. ¿Poderia ter sido pior, diante do tamanho das políticas anticíclicas e da rede de proteção social criada pelo governo. Mas o que se espera é que o superávit convirja para as metas¿, afirmou Altamir.

1 - Estratégia O Fundo Soberano é um instrumento financeiro usado por alguns países para uma parcela de suas reservas internacionais, também conhecidas como reservas cambiais. Esses fundos investem as reservas de maneira diversificada, como já acontece com China, Catar, Noruega, Dubai e Cingapura. Uma das aplicações vem sendo a compra de participações acionárias em empresas estrangeiras, geralmente com objetivos financeiros e estratégicos. O Brasil criou seu Fundo Soberano em 2008.

Arrancada do débito público

A queda de 65% no superávit primário (economia para o pagamento de juros) deste ano (de R$ 109,4 bilhões para R$ 37,7 bilhões) provocou uma arrancada brutal na relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB), um dos principais indicadores de confiança do país. O índice fechou setembro em 44,9%, um aumento de 6,1 pontos percentuais em relação ao registrado em dezembro do ano passado (38,8%). Desde de julho de 2007, não se via uma relação entre a dívida e o PIB tão elevada.

Segundo o chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, ainda que considerável, não há porque temer a alta da dívida. ¿Quando olhamos para a maioria dos países, vemos que o aumento do endividamento brasileiro foi muito menor¿, afirmou. Ele citou como exemplo os Estados Unidos, onde a relação entre a dívida líquida e o PIB passou de 47,9%, em 2008, para 58,2% neste ano. Na Zona do Euro, o salto foi de 59% para 68,6%, movimento que tende a se manter em 2010, quando o indicador deverá bater em 74,6% do PIB, pelas contas do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Altamir ressaltou que, em outubro, a dívida dará outro salto frente ao PIB: provavelmente, para 45,1%. Mas, a seu ver, a tendência do índice é de queda. Nos seus cálculos, se o superávit primário deste ano ficar no piso de 1,56% do PIB, a relação entre o endividamento e o Produto ficará em 44,2%. Se o superávit fosse de 2,5%, o tombo seria maior, para 43,3%. Em 2010, acredita ele, se o governo cumprir a promessa de fazer uma economia de 3,3%, a dívida poderá baixar para 40,9% do PIB. ¿Estamos confiantes¿ frisou. Em 2002, diante da desconfiança dos investidores quanto a um possível governo Lula, a dívida líquida (que está hoje em R$ 1,325 trilhão) chegou a encostar nos 60%.

Estados

Ao apresentar os números consolidados das contas públicas, o economista do BC lembrou que a piora de resultados do superávit primário se deu basicamente no governo federal, que concentrou as políticas de combate aos efeitos da crise. Quer dizer: não fossem os estados e estatais, principalmente, o déficit primário de R$ 5,7 bilhões de setembro teria sido ainda maior. Os estados apresentaram saldo positivo de R$ 1,642 bilhão, o melhor para meses de setembro desde 2006. As estatais economizaram R$ 535 milhões, valor sem precedentes para o mês desde 2007. Para Altamir, além de não perderem tantas receitas, os estados se beneficiaram da queda dos índices de inflação que corrigem suas dívidas com o governo federal. (VN)

Aposta no curto prazo

Quase um quarto dos títulos da dívida pública em poder do mercado está sendo negociado no curtíssimo prazo, o chamado overnight, impondo um pesado custo aos cofres públicos. Segundo dados divulgados ontem pelo BC, essas operações totalizavam, no fim de setembro, R$ 430,2 bilhões, o correspondente a 23,7% do montante de títulos. Parte desse dinheiro pertence a investidores que estão preferindo manter suas aplicações em papéis do governo por no máximo três meses, com remuneração da taxa básica de juros (Selic), do que comprar títulos de mais longo prazo vendidos pelo Tesouro Nacional. Eles temem o aumento da inflação, o que levaria o governo a elevar a Selic já no início de 2010.

Diante dessa montanha de dinheiro inundando o mercado, aumentaram as possibilidades de o BC elevar os depósitos compulsórios. No auge da crise, o banco liberou quase R$ 100 bilhões que estavam retidos em seus cofres para estimular o crédito e evitar a quebra de instituições financeiras, especialmente as de pequeno e médio portes. Desse montante, cerca de R$ 20 bilhões já retornaram para o BC devido ao aumento de depósitos à vista e a prazo. A ideia era deixar o mercado se ajustando normalmente. Mas o problema foi que, nos últimos meses, o banco teve que inundar o mercado com mais recursos ao acelerar a compra de dólares para conter a valorização do real.

Para Caio Megale, economista-chefe da Mauá Sekular Investimentos, a tendência é de o BC só elevar os recolhimentos compulsórios que os bancos são obrigadas a fazer em seus cofres depois do Natal. ¿O BC avaliará o mercado de crédito, que será responsável por boa parte do superaquecimento da economia nos próximos meses¿, disse. ¿Os compulsórios foram liberados em uma situação de emergência, que, agora, não existe mais¿, acrescentou. Na sua opinião, se os compulsórios realmente subirem, o Comitê de Política Monetária (Copom) não terá que pesar tanto a mão sobre os juros para conter as pressões inflacionárias que se desenham para 2010. (VN)