Título: Remédio amargo para os brasileiros
Autor: Carvalho, Paola; Castro, Marinella
Fonte: Correio Braziliense, 08/11/2009, Economia, p. 24

Faturamento das empresas já supera o orçamento destinado pelo governo ao Ministério da Saúde desde 2007. Mas a insatisfação dos consumidores com o atendimento não para de crescer

Viviane gasta 50% da renda mensal com um plano para o pai e a mãe, mas ficou na mão quando precisou

O governo federal deve gastar R$ 62,47 bilhões com a saúde dos brasileiros em 2010, se os valores previstos pelo Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o Ministério da Saúde forem aprovados no Congresso Nacional. Os planos de saúde, contudo, projetam faturar mais que isso, R$ 64,6 bilhões, mesmo cobrindo somente 22% da população, conforme a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em 2008 (último balanço divulgado), enquanto os recursos da União destinados à pasta foram de R$ 52,6 bilhões, o faturamento da ¿indústria da saúde¿ bateu R$ 60,34 bilhões. Na mesma proporção das receitas, cresceram as reclamações dos consumidores. Nunca se reclamou tanto da má qualidade dos serviços prestados pelos planos.

Numa análise das contas do setor, observa-se que os recursos direcionados ao Ministério da Saúde eram maiores que a receita dos planos suplementares até 2006. A inversão foi verificada em 2007 e o diagnóstico financeiro dado por especialistas apontam a consolidação dessa tendência já que os brasileiros se veem cada vez mais obrigados a contratar o serviço privado. ¿Antigamente, as famílias tinham o amparo do governo e de onde trabalhavam. Quem entra hoje na fila de hospital público ou terá um péssimo atendimento ou vai ficar na fila vendo o sofrimento do filho, por exemplo. Então, as pessoas estão indo buscar o plano de saúde, já que a área médica se profissionalizou e se tornou uma indústria¿, avaliou o diretor da Organização Não Governamental (ONG) SOS Vida, o advogado Antônio Carlos Teodoro Aguiar.

Mas, para ele, quem faz o papel do Estado agora é a Justiça, que, muitas vezes, é obrigada a intervir para garantir o atendimento do plano. Isso, apesar da certeza do consumidor que contrata um plano privado de que está protegendo a família em caso de emergência. A saúde costuma ser o primeiro investimento extra do orçamento doméstico, mesmo quando não há folga de recursos. A fatura enviada pela operadora é a conta que nunca atrasa, já que a punição pelo débito em aberto é o acesso vetado aos médicos e aos exames. Os custos da sobrevivência são mesmo de tirar o sono das famílias. Uma consulta médica, com preço inicial de R$ 50, pode sair por mais de R$ 250. Um simples hemograma custa R$ 57,20. Os valores crescem com a complexidade do serviço.

Foi pensando nesses gastos que a agente de viagem Viviane Evangelista decidiu fazer um plano de saúde para o pai aposentado e a mãe dona de casa. ¿Faço um grande sacrifício para pagar o plano de saúde que consome 50% do meu orçamento. Tenho que fazer vários freelancers e abrir mão de quase tudo. Mas foi uma escolha que fiz, investir na saúde dos meus pais.¿ A expectativa não correspondeu à realidade. Apesar dos R$ 500 de mensalidade, no momento em que mais precisou teve de recorrer à Justiça para ter acesso pelo que pagou. Em seis anos de plano, foram duas urgências e dois sustos.

Na primeira vez, uma história chocante. Pronto para a cirurgia, seu pai foi subitamente retirado do bloco cirúrgico porque a operadora Unimed não autorizou o procedimento. ¿Os médicos se retiraram da sala de cirurgia e meu pai foi devolvido para o quarto. Uma humilhação, um desespero que não desejo a ninguém.¿ Emocionada, a agente de viagem de hábitos simples lembra que pela primeira vez na vida precisou ter contato com um advogado. ¿A cirurgia foi autorizada pela Justiça.¿

Há quatro meses, um novo desafio para Viviane. Seu pai precisou realizar um cateterismo, que na rede privada custa em média R$ 2 mil. O procedimento havia sido autorizado pela operadora. ¿Meu pai fez todo o preparo para o exame, negado na última hora pelo plano.¿ Mais uma vez, ele foi socorrido pelo judiciário. ¿Dessa vez, decidi não deixar barato. O desrespeito foi grande demais. Estou movendo uma ação por danos morais¿, diz.

Segundo a Unimed, todos os procedimentos solicitados pelo paciente foram realizados e o cliente tem tido sua assistência assegurada, conforme as condições contratadas.

O número Cofre cheio R$ 60,34 bilhões Faturamento dos planos suplementares em 2008

O número 191% Estimativa de crescimento da receita das empresas de saúde suplementar entre 2001 e 2010

Poucos vão à Justiça

Em 2010, o faturamento da indústria da saúde suplementar deve alcançar R$ 64,6 bilhões, um aumento de 191% em relação a 2001. As receitas cresceram bem mais que o número de usuários cobertos pelo setor, que apresentou pouca evolução, passando, no período, de 18% para 22% da população, um avanço de 16,7%. Apesar do incremento da receita, o volume de processos judiciais mostra que as coberturas de alto custo são um entrave e até mesmo questões pacificadas pela lei, como a internação obrigatória em caso de urgência, ainda acontecem sobre força de liminares.

Apesar dos péssimos serviços prestados pelas empresas, as associações de defesa do consumidor avaliam que o percentual de usuários insatisfeitos que procuram a Justiça ainda é pequeno. Por isso, torna-se vantajoso para os planos de saúde discutir até mesmoo casos de consenso no judiciário. ¿A sensação que temos é que, a cada 10 insatisfeitos, apenas dois procuram a Justiça. Esse é o motivo das recorrentes negativas de atendimento e de decisões no Superior Tribunal de Justiça (STJ) continuarem a ocorrer¿, comenta Lilian Salgado, advogada da Associação Nacional dos Consumidores de Crédito (Andec), que incentiva consumidores a buscar seus direitos (leia caso na página 25).

A situação é tão complicada, que nem mesmo o trabalho de esclarecimento realizado pelos Procons e pelo Juizado Especial de Consumo evita que os conflitos entre operadoras de saúde e usuários dividam com o setor de seguros o terceiro lugar na demanda das varas cíveis do Fórum Lafayette, de Belo Horizonte, perdendo somente para os bancos e a telefonia celular. Para o juiz da 4ª Vara Cível, Jaubert Carneiro Jaques, muitas vezes é lucrativo levar uma discussão para a Justiça. ¿Ainda é grande a parcela da população que fica resignada e não busca seus direitos.¿

O magistrado explica que, como não existe uma súmula que determine um formato para os julgamentos, ações envolvendo cláusulas abusivas, desequilíbrio contratual, discriminação por idade e enfermidade posterior se repetem. (MC e PC)

Ainda é grande a parcela da população que fica resignada e não busca seus direitos¿

Jaubert Carneiro Jaques, juiz

Internação barrada Paulo Filgueiras/EM/D.A Press Josenberg (D) acionou a Justiça após problemas com o convênio médico

O gerente Josenberg Ferreira decidiu acionar a Justiça para questionar uma negativa de atendimento que, na última semana, desesperou sua família. Segundo a regulamentação do setor, em caso de urgência, a carência é de 24 horas. Há quatro meses, ele contratou o plano Só Saúde. Há sete dias, seu filho precisou ser internado às pressas. O bebê de nove meses, Victor Brayan, estava com suspeita de meningite. ¿O plano negou a internação, dizendo que ainda faltavam dois meses para vencer a carência.¿

Com uma conta de R$ 1,5 mil para pagar, referente a cinco diárias em um hospital pediátrico, Ferreira pretende recorrer à Justiça. ¿Fiz o plano exatamente para ter tranquilidade. Meu filho deu entrada no hospital como urgência. Diante da negativa do plano, fui forçado a deixar no hospital um cheque caução. Só tenho como pagar essa conta se fizer um empréstimo bancário¿, relata.

A operadora Só Saúde nega qualquer conflito na internação do bebê. Segundo a empresa, não consta em seu sistema qualquer negativa de atendimento ao bebê. Na Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), ninguém foi encontrado para comentar o tema. A assessoria de imprensa da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) informou não ter conhecimento do descumprimento da lei por qualquer operadora conveniada à Federação. (MC e PC)

SUS ainda longe do ideal

Para José Cechin, presidente do IESS, a vida não tem preço, mas os recursos das famílias brasileiras são limitados. ¿O resultado é a fila no SUS. O setor público gasta pouco, de 1,5% a 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB) e as pessoas têm que se virar por conta própria¿, critica. Ainda segundo ele, é ¿folclore¿ pensar que o lucro dos planos de saúde é extraordinário. ¿A sensação é que operadoras ganham rios de dinheiro porque tem gente que paga e não usa. Mas é como um seguro de carro. O ideal é não ter a obrigação de gastar mesmo. Eu paguei R$ 1 mil no ano e não gastei nada. Pois é, meu vizinho fez uma cirurgia de R$ 10 mil pagando o mesmo tanto que eu¿, exemplifica. (PC)