Título: Derrapagem institucional
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 08/11/2009, Opinião, p. 27

O Tribunal Superior Eleitoral determinou a cassação do mandato de um dos senadores da República do estado de Rondônia. A decisão foi comunicada ao Senado Federal, que não a cumpriu, sob o fundamento de que era primeiramente necessário que ocorresse o trânsito em julgado da decisão proferida pela Justiça Eleitoral. Descumprido o julgado, ajuizou-se no Supremo Tribunal Federal mandado de segurança para que a decisão da corte eleitoral fosse respeitada. Efetuado o julgamento final da segurança, o tribunal deferiu a ordem e determinou que o impetrante ¿ o segundo mais votado para senador no estado ¿ fosse imediatamente empossado no cargo.

O ofício do julgamento foi expedido para que a Mesa da Casa desse imediato cumprimento à ordem concedida, a fim de que procedesse à posse do novo senador. O inusitado, entretanto, veio a acontecer. O senador cassado peticionou à Presidência do Senado, alegando que tinha direito de permanecer no cargo pelo menos até que lhe fosse assegurado o direito de defesa. Estabelecida a controvérsia, o expediente foi remetido à Comissão de Constituição e Justiça para que se pronunciasse sobre o impasse criado.

A Justiça Eleitoral ordenou a cassação do mandato do senador por captação ilícita de sufrágio. Essa nova regra é originária de emenda popular, o que dá mais legitimidade ao que preceitua. Em síntese, no presente caso, resultou provado que houve compra de votos. Quando a condenação se dá por força de violação desse princípio, a cassação do mandado se opera imediatamente, devendo a vaga ser ocupada pelo segundo candidato mais votado no estado. O TSE consolidou jurisprudência nesse sentido, o mesmo se dando com relação a julgamentos lavrados pelo STF. Não há, pois, como se estabelecer confusão com a regra do artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90, que trata de casos de inelegibilidade e prazos de cassação. Nessa estrita hipótese, a decisão proferida, para ser executada, precisa antes transitar em julgado.

Foi exatamente isso que ocorreu no julgamento do senador. Por ter sido condenado por captação ilícita de votos, prevista no artigo 41-A da Lei nº 9.504/97, o cumprimento da decisão do julgamento deveria ter se dado de forma imediata. Cassado originariamente pela Justiça Eleitoral do estado de Rondônia, mesmo assim houve interposição de recurso ordinário para o TSE, que, todavia, confirmou a decisão proclamada no estado. Após o julgamento, expediu-se comunicado ao Senado para que o julgado fosse sem mais delongas cumprido.

Acionada a consultoria jurídica da Casa, entendeu-se que, para a posse do novo senador, era imperativo que houvesse em primeiro lugar o trânsito em julgado do acórdão. A parte interessada, irresignada com a conclusão a que chegou o Senado, ajuizou mandado de segurança no STF. O resultado do julgamento da segurança foi no sentido de que aquela Casa deveria dar posse imediata ao senador colocado em segundo lugar na votação do estado. Esses resumidamente os fatos.

A comunicação feita pelo STF ao Senado sobre o deferimento da ordem deveria ter sido acatada sem qualquer tergiversação. Casa legislativa da tradição do Senado não poderia jamais deixar de cumprir decisão oriunda da mais alta Corte de Justiça do país. Mandar ouvir a Comissão de Constituição e Justiça consubstancia absurdo inominável. Todos os remédios jurídicos já tinham sido exauridos na órbita do Poder Judiciário. Até embargos declaratórios opostos ao acórdão do recurso ordinário no TSE já haviam por unanimidade sido rejeitados. Qualquer entendimento que o Senado viesse a dar para sonegar o cumprimento da decisão implicaria em indébita intromissão no próprio julgamento do STF. Dizer, por exemplo, que houve erro seria consumado despautério. Não lhe restava alternativa se não o acatamento da ordem expedida pela Justiça.

Paro por aqui. Tomo conhecimento agora de que hoje, quinta-feira, dia 5, às 16h, o Senado, enfim, curvando-se ao óbvio, vai dar posse ao novo senador por Rondônia. Desde o momento em que o ofício chegou àquela casa, nunca poderia deixar de ser atendido. Ainda bem que tiveram descortino suficiente para não permitir que a ordem deixasse de ser adimplida. Nenhum poder da República, nenhuma autoridade, por maior que seja, e nenhum cidadão, seja de que nível social for, pode deixar de respeitar ordem que promane do Poder Judiciário. Na estrutura de organização política do Estado compete-lhe dirimir conflitos submetidos à sua apreciação. Se o cidadão comum é obrigado a respeitar as decisões da Justiça sob pena de sofrer sanções consequentes, com muito mais razão não podem furtar-se às suas determinações os órgãos do Estado.

É evidente que não fica bem para autoridades da República, sobretudo quando se investem na condição de representantes eleitos pelo povo, que posterguem ou refuguem o cumprimento de decisões judiciais. Ainda mais quando se cuida de mandado de segurança julgado pelo próprio STF, como se verificou no caso. Suponha-se só o caos que criariam, caso o bom senso não tivesse prevalecido. Recebida a determinação da Corte, o Senado nada mais poderia fazer a não ser dar cabal cumprimento à ordem recebida. Ainda bem que se pôs cobro à insensatez antes que convertessem a República numa bagunça institucional.