Título: Cerco judicial à farra das passagens
Autor: Brito, Ricardo
Fonte: Correio Braziliense, 16/11/2009, Política, p. 2

Ação popular é a última chance de punição a parlamentares envolvidos no uso indiscriminado de bilhetes aéreos na Câmara. Recurso cobra o ressarcimento aos cofres públicos

Para Temer, regras eram omissas e, por isso, não houve irregularidades

Edilson Rodrigues/CB/D.A Press - 22/4/09 Gabeira ressarciu os cofres públicos depois de viabilizar uma viagem da filha

José Varella/CB/D.A Press - 28/3/07 Ministro do TCU utilizou uma passagem reservada ao deputado João Otávio Germano

Edilson Rodrigues/CB/D.A Press - 23/4/09 Ex-namorada de Fábio Faria viajou sete vezes com a cota do parlamentar

Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 9/6/09 Assessoria de Augusto Nardes diz que ele já prestou esclarecimentos sobre o caso

Descrente com a possibilidade de uma resposta das autoridades, o advogado sul-mato-grossense Fernando Gonçalves, de 47 anos, decidiu levar a farra das passagens aéreas dos deputados para a Justiça. Logo após o escândalo vir à tona, em abril deste ano, Gonçalves entrou com uma ação popular(1) em que cobra de 265 deputados e ex-deputados a fatura por terem repassado, em 2007 e 2008, bilhetes de viagens a terceiros. A conta pela transferência das passagens, segundo o advogado, ficou em R$ 4,7 milhões, incluindo as taxas de embarque. Esse foi o valor estipulado pelo site Congresso em Foco, autor das primeiras reportagens sobre o caso.

Para o advogado, os parlamentares atentaram contra a ¿moralidade pública¿ ao utilizarem as cotas aéreas para fazer turismo ou beneficiar terceiros. Ele questiona a alegação de que não haveria ilegalidade nesse uso, uma vez que não existia à época, conforme argumentam os parlamentares, norma que proibisse as autoridades de agir dessa forma. ¿É para uso dos parlamentares desempenharem seu trabalho¿, afirmou Fernando Gonçalves. ¿Não é possível que mais esse mau uso do dinheiro público fique impune.¿

O uso de bilhetes de viagens por parentes e amigos de parlamentares era prática corrente na Câmara. O caso começou com a descoberta de que a apresentadora de TV Adriane Galisteu viajou sete vezes se valendo da cota aérea do deputado Fábio Faria (PMN-RN), então namorado dela. A partir daí, seguiram-se revelações de que deputados de vários partidos, do baixo clero, do chamado grupo ético e da cúpula da Casa, transferiram passagens para conhecidos sem qualquer controle. A Câmara abriu investigação interna para apurar se havia a participação de deputados e servidores num esquema de venda irregular de bilhetes.

Absolvição O indício do mercado paralelo surgiu depois que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, foi envolvido no caso. Mendes comprou para ele e a esposa numa agência passagem para os Estados Unidos. Segundo as investigações, a agência se valeu de créditos de passagens da Câmara, administrados por funcionários de dois gabinetes, a fim de realizar a venda. Sem descobrir o envolvimento de deputados, as investigações da Casa seguiram para o Ministério Público Federal em Brasília. A Corregedoria da Câmara ainda apura a participação de mais de 40 gabinetes de parlamentares na venda de passagens.

Até o momento, os deputados foram anistiados de qualquer punição. Às primeiras denúncias, o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), isentou os parlamentares ¿ inclusive ele ¿ de irregularidades por entender que as regras sobre o uso das cotas aéreas eram omissas. ¿Não houve ilícito de nenhuma natureza. Aqueles que utilizaram (a cota) sem que houvesse regra clara não cometeram ilícito¿, afirmou Temer. Mas a pressão levou a Casa a fixar regras sobre as passagens. Entre as mudanças, destacam-se: o repasse de passagens a familiares foi proibido, embora não o aproveitamento de milhagens; e os deputados terão de ter autorização prévia da Mesa Diretora para realizarem viagens internacionais.

1- Ação popular Prevista na Constituição de 1988, a ação popular pode ser proposta por qualquer cidadão interessado em anular ato lesivo ao patrimônio público. Em caso de desistência do cidadão, o Ministério Público, se tiver interesse, pode dar prosseguimento à ação.

O número R$ 4,7 milhões Custo da farra das passagens segundo a ação

Processo demorado

A ação movida pelo advogado Fernando Gonçalves segue um caminho lento e difícil para reaver os recursos públicos. A Justiça Federal em Campo Grande decidiu arrolar só quatro das 265 autoridades citadas na ação para responder pelo escândalo. O argumento, respaldado no Código de Processo Civil, é o de que o juiz pode limitar o número de pessoas a fim de dar rapidez ao processo. Permaneceram como réus o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), os deputados Fernando Gabeira (PV-RJ) e José Otávio Germano (PP-RS), e o ex-deputado Augusto Nardes, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Os quatro são os primeiros da lista indicada pelo advogado.

A assessoria de imprensa da Presidência da Câmara informou que a assessoria jurídica da Casa está fazendo a defesa dos deputados na ação. Amparado em parecer do jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, presidente da Associação dos Constitucionalistas, a Câmara argumenta que a prática era ¿justificada juridicamente¿. Essa será a linha de defesa de Temer, que levou familiares e amigos a Porto Seguro (BA), em janeiro de 2008, durante o recesso parlamentar. Fernando Gabeira, por sua vez, disse que já devolveu aos cofres públicos R$ 6,4 mil de uma passagem da filha aos Estados Unidos, paga com a cota da Câmara.

Defesa ¿Já paguei¿, disse Gabeira, não querendo opinar sobre os deputados que não tiveram a mesma atitude dele. O chefe de gabinete do ministro Augusto Nardes, Alden Mangueira, afirmou que o chefe encaminhou os esclarecimentos necessários à Justiça, já tendo feito o ressarcimento da passagem da cota do deputado José Otávio Germano, de quem é amigo. Nardes viajou no fim de 2007 para Porto Alegre usando a cota de Germano. Segundo o chefe de gabinete, a secretária de Nardes teve dificuldades para emitir uma passagem para o ministro e se socorreu da secretária de Germano, amiga dela. As tratativas, afirma, se deram sem o conhecimento do deputado e do ministro do TCU. ¿Em nenhum momento ele se utilizou ou obteve beneficio por causa de cota do deputado¿, afirmou Alden Nogueira. Germano não foi localizado na última sexta-feira.

No fim de agosto, Fernando Gonçalves pediu à Justiça que cerque os três próximos da lista: os deputados Dagoberto Nogueira (PDT-MS), Leo Alcântara e Marcelo Teixeira ¿ os dois últimos do PR-CE. O juiz do caso ainda não decidiu se aceita os novos processados. O autor da ação reclama que, ao diminuir o número de réus, a Justiça na prática impede o ressarcimento dos recursos. Dos 265 citados inicialmente, só Temer poderia ter que devolver os recursos no momento. O advogado espera que o Ministério Público Federal, que ainda não atuou no caso, peça a inclusão de novas autoridades ou mova outras ações contra os deputados. (RB)