Título: A politização é que atrapalha
Autor: Lima, Evandro Souza; Rothenburg, Denise
Fonte: Correio Braziliense, 16/11/2009, Política, p. 6

Especialista da UnB afirma que as deficiências no gerenciamento do sistema estão na base do colapso do abastecimento de energia elétrica

A confiabilidade de 95% do sistema elétrico brasileiro apontada pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e pelo ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, ¿é chute¿. Quem diz é um renomado especialista no assunto, o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Evandro Emílio Mariano da Rocha de Souza Lima. Formado em engenharia pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em 1966, com doutorado na França, ele se dedica ao estudo dos sistemas de potência desde 1973, quando começou a lecionar na UnB. Hoje aposentado, aos 68 anos, ele resume o sistema nacional como uma ¿caixa-preta cheia de esqueletos no armário¿. E avisa: Tem que haver uma despolitização do sistema. Se não, quem sofre é a população.

A ministra Dilma está certa quando diz que o sistema é robusto? Ela é economista. Assisti apavorado em 2003 a um simpósio de perspectivas energéticas para a Amazônia. Ela ficou pouco. Ao longo do simpósio, discutiu-se o abastecimento para a Amazônia. Perguntei-me por que não construíram o gasoduto Urucu-Manaus. Então vi um diretor da Eletrobrás apresentar um projeto de suprir Manaus com uma linha de transmissão de Tucuruí. Fazer essa linha com carga em Manaus é uma doidice e vai baixar a confiabilidade do nosso sistema. Pode até fazer, mas num futuro, hoje, pode-se resolver com duas térmicas. E, mais para frente, fazer algumas pequenas usinas. Mas essa linha, se houver um curto circuito em Manaus, vai desligar Manaus e a energia vai bater lá, vai para trás e vai parar Tucuruí. Essa linha é cara. A passagem do rio Amazonas será feita com torres de 250 metros. Será caríssimo e vai baixar a confiabilidade.

Mas não dizem que as térmicas são poluentes? Mas o gás está lá. E não estamos pensando no pré-sal? Esse projeto é uma tristeza e foi defendido pelo diretor da Eletrobras Valter Luis Cardeal. Vai baixar a confiabilidade.

E hoje, o sistema é mesmo 95% confiável? Nada, é chute. Não tem sentido. Confiabilidade é uma coisa séria. Olha o que o americano usa: existe um critério para (confiabilidade de) geração, vê a carga e se prevê não ter energia 24 horas durante 10 anos. Não quero politizar, mas, se o consumo brasileiro tivesse aumentado e tivéssemos tido uma seca como a de 2001, será que teríamos 15 a 20% de folga no sistema? E o critério da transmissão é N (número de linhas) menos um. Ou seja, pode tirar uma linha (uma apresenta problemas) e o resto tem que continuar trabalhando dentro dos limites de operação normais. Agora no apagão, eles (do governo) disseram que houve um ¿n¿ menos três. Em Bauru (SP), no apagão de 1999, foram quatro, cinco linhas. Ainda não disseram como é o barramento (que distribui a energia) de Itaberá. Por que um raio que caiu em uma linha contaminou outras três? Isso ainda não foi explicado.

O senhor falou da geração. O Brasil tem uma série de usinas em construção. Esses novos projetos, como Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, vão resolver? Naquele simpósio de 2003, vi defenderem o projeto do Madeira. Disseram que dominávamos a tecnologia das geradoras tipo bulbo (são horizontais, para hidroenergia, e não precisa fazer barragem muito alta). Na realidade, tínhamos quatro ou cinco pequenas geradoras desse tipo. A Europa tem centenas. Ocorre que nunca foram feitas em escala mundial usinas tão potentes com geradoras bulbo e a tanta distância dos centros de carga. O rio Danúbio está cheio de usinas bulbo, mas todas pequenas. É como se fosse uma bolinha pequena amarrada com uma mola bem forte.

No Madeira será assim? São 99, de 82 megawatts, um programa nunca visto na engenharia mundial, ligado por uma linha de 2 mil quilômetros. É um problema novo. Fiquei chocado por dizerem que já dominávamos a tecnologia. Achei uma irresponsabilidade. É uma coisa completamente nova e muito problemática. A humanidade faz pontes há séculos. Uma ponte inaugurada em 2000 na Inglaterra começou a tremer com os passos da multidão e foi cancelada a inauguração.

Então Jirau e Santo Antônio vão dar problema lá na frente? Não digo que vão dar. Acho uma leviandade dizer que dominamos essa tecnologia por ter meia dúzia de bulbozinhos no Brasil. Num outro simpósio, no Rio de Janeiro, em 2006, um engenheiro da Siemens falou que as usinas bulbo tinham baixo momento de inércia (se tem uma perturbação, ela varia a velocidade de rotação rapidamente e os geradores são feitos para rodar numa frequência determinada). Um engenheiro do Brasil disse que tinha estudado e que iriam funcionar como um pelotão. Eu estava fazendo um trabalho para a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) e achei que o engenheiro alemão merecia um crédito. Comecei a pesquisar na internet e me deparei com um paper (estudo) que nunca tinha visto, sobre um problema real e não simulações. Falava de duas turbinas na Croácia, de 40 megawatts, metade de uma de Jirau ou Santo Antônio. E eles tiveram problemas enormes de vibração e de frequência natural.

Quando esse problema ocorre, acontece o quê? Eles tinham que desligar (a usina) porque começava a tremer. Tiveram que trocar a estrutura. Avisei uma pessoa do governo e ela veio com outro paper, que também é magnífico, sobre soluções de problemas em usinas bulbo. Mas, bem no final, a conclusão é a de que o problema foi parcialmente resolvido. Não é apenas generalidade. Tinha sentido o que disse o alemão. Pedi estudos à EPE. Eles me disseram que não tinham verba para comprar os equipamentos de testes, mas que, no final do ano, resolveriam. Até hoje nada.

A que o senhor atribui esse blecaute que deixou 18 estados no escuro? Na base do problema, temos uma má gerência do sistema elétrico. Essa palavra gerência, por sinal, está sendo usada de uma forma confusa.

Como assim? Quando ocorre uma perturbação do sistema de potência, já tem que estar tudo preparado porque a tomada de decisão é automática, leva fração de segundo. Tem que planejar e implementar o sistema para que a decisão seja executada automaticamente. Tem que se separar gestão do sistema elétrico da gestão na hora em que houve a contingência. São duas coisas diferentes e houve uma confusão nisso. Em 1965, quando houve um apagão nos Estados Unidos, o engenheiro Charles Concordia, um guru dos sistemas elétricos, trabalhava na GE perto de Nova York. Estudando os sistemas interligados de potência, ele previu os blecautes. Como tinha alguns geradores disponíveis ¿ e, em sistemas elétricos, o que gera tem que consumir na hora ¿, ele preparou sistemas de medida e de desligamento de tal maneira que, quando notasse que o sistema integrado tinha sido perturbado, ele desligava e formava uma ilha com a geração e a carga equilibrada (o ilhamento). Em 1967, houve um outro apagão nos Estados Unidos. Ele, então com a autoridade de quem já havia livrado a sua região, criticou as companhias de energia americanas por não terem feito os planos de ilhamento do sistema.

Então, o problema dos blecautes está diagnosticado há tempos? O sistema interligado veio para ficar. Temos uma geração em grande parte hidrelétrica e é preciso interligar várias usinas longe. O que a engenharia tem que fazer é entender os problemas e fazer a repartição de cargas para minorar os efeitos. O Rio de Janeiro, por exemplo, tinha Angra I e II, que foram afetadas pelo efeito em Itaberá.

E por que o governo não faz esse ilhamento? Esse ilhamento custa caro em planejamento, hora de computador, massa cinzenta e implementação. Vemos hoje que o nosso sistema elétrico é extremamente frágil. Está cheio de cadáveres dependurados no armário. Existe um corporativismo no setor elétrico que a gente fica sabendo de poucas informações. É uma caixa fechada, uma caixa-preta. Às vezes, um ex-aluno conta, um professor conta. Fiquei sabendo, por exemplo, nessas discussões do apagão que o sistema de refrigeração de Angra I e II depende de um sistema externo. Isso foi dito na TV, dia 11. Não existia um sistema de refrigeração próprio! Isso é um absurdo. O sistema de refrigeração dessas centrais é muito potente. Dependia de fora, não tinha um sistema autônomo. Isso é uma incoerência.

Por que isso? Por economia? Por economia.

Uma economia burra? Economia burra. Isso sai mais caro. Quando faz a recomposição, coloca equipamentos auxiliares em algumas usinas e elas começam a fazer a recomposição depois de uma falha dessas. Esses equipamentos custam dinheiro. O nosso sistema tem pouca preocupação com a confiabilidade. É pouco confiável, mas a gente só vê quando tem um apagão. Por isso eu digo que está cheio de esqueletos. O background é que o nosso sistema é administrado politicamente e os técnicos se acostumaram, para subir, para ocupar os postos chaves ¿ e isso não é deste governo, vem de muito longe ¿ têm que falar os que os políticos querem. A gente sabe o que tem nessas obras: ¿Ela (Angra) funciona sem autonomia? Funciona. Então vamos inaugurar, vamos gastar menos¿.

E as explicações para o apagão? As explicações são uma tristeza. A gente vê que muitas são mentirosas, querem enganar a população. Me refiro ao apagão de Bauru, em 1999. Técnicos falaram: ¿Aconteceu um fenômeno que ocorre a cada 100 anos, o raio caiu em cima da subestação¿, histórias da carochinha. Me convenci de que as explicações não estavam corretas quando um técnico que morava perto da subestação disse que naquela noite ele estava em casa e não viu nenhum raio tão forte cair perto. E, mesmo que caísse, uma subestação importante tem que ter para-raios e com um aterramento muito forte. Depois, fiquei sabendo que o raio tinha caído a 25km, entrado na subestação e aí, então, derrubado as outras linhas ligadas a ela. Primeiro, essas linhas são protegidas com para-raios. Depois, é preciso ver o barramento da subestação (os equipamentos de distribuição e proteção). Uma subestação pode ser feita com seis, sete, nove disjuntores, elementos caríssimos. É claro que o de nove disjuntores é muito mais caro que o de seis, mas é muito mais confiável. Naquela época, eu verifiquei que o barramento de Bauru era obsoleto, tinha poucos disjuntores e não isolava as linhas. Soube então que essa subestação teve falta de recursos. No final, faz assim com Angra I e II: funciona até dar um problema.

Uma ilha dessas custa quanto? Não dá para dimensionar porque depende do tamanho. Em 1999, disseram que iriam fazer o ilhamento. Hoje, a gente vê que não fizeram.

Esse ilhamento resolve? Não, mas circunscreve os efeitos, não atinge tanta gente. Salvaria o Rio de Janeiro, por exemplo, com a geração que tem lá. Os técnicos sabem disso. Mas a grande maioria vê tudo e fica fazendo o seu trabalho, calado, porque quem designa são os políticos. Afinal, não adianta brigar contra forças poderosas. O certo hoje seria despolitizar o sistema.

O pano de fundo é que nosso sistema é administrado politicamente, e os técnicos, para subir, para ocupar os postos-chave, têm que falar o que os políticos querem¿

O nosso sistema elétrico é extremamente frágil. Está cheio de cadáveres dependurados no armário. Existe um corporativismo no setor elétrico que a gente fica sabendo de poucas informações. É uma caixa fechada, uma caixa-preta¿