Título: Fazenda afeta poder do BC
Autor: Gomes, Carlos Thadeu de Freitas; Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 22/11/2009, Economia, p. 16

Entrevista: Carlos Thadeu de Freitas Gomes

¿Desde que Mantega passou a comandar as medidas cambiais, muitos bancos e investidores desmontaram posições especulativas¿

O fato de o governo ter transferindo as decisões sobre política cambial do Banco Central (BC) para o Ministério da Fazenda está travando muito mais o processo de queda do dólar do que a cobrança em si de 2% de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) na entrada de capital estrangeiro no país. Na avaliação do economista Carlos Thadeu de Freitas Gomes, duas vezes diretor do BC, os investidores deixaram de conviver com a previsibilidade do banco para enfrentar surpresas oriundas da pasta comandada por Guido Mantega. ¿Desde que Mantega passou a comandar as medidas cambiais, para tentar conter a forte valorização do real, muitos bancos e investidores desmontaram posições especulativas que vinham forçando a queda da moeda americana. Todos temem que, a qualquer momento, o IOF seja aumentado, resultando em prejuízos¿, diz. Apesar do efeito positivo do risco-Mantega, Freitas Gomes, atual economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), reconhece que o processo de desvalorização do dólar é estrutural. A moeda esta pagando o preço da necessidade de o Federal Reserve (Fed), o BC dos Estados Unidos, manter a taxa de juros próxima de zero para conter uma explosão do desemprego e não reverter o tímido processo de recuperação da maior economia do mundo. Ele ressalta ainda que essa política pode custar caro aos países emergentes, como o Brasil, pois estimula a criação de bolhas ¿ o que já se percebe na bolsa de valores brasileira e no mercado de imóveis. Para o ex-diretor do BC, o crescimento de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010 é certo. Mas há o risco de a taxa básica de juros (Selic) subir no fim do ano que vem, não por causa do aquecimento da atividade, mas pela gastança desenfreada do governo. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva concedida por Freitas Gomes ao Correio Braziliense.

O maior risco para a inflação vem dos gastos públicos. O próximo governo terá a obrigação de botar o pé no freio das despesas¿

¿É legítima a decisão pessoal dele (Meirelles) de sair candidato. Mas essa perspectiva levou a cobrança de um adicional na taxa de juros¿

Existe hoje uma grande incerteza perturbando o mundo em relação à economia americana, que traz riscos ao Brasil. A recuperação que estamos vendo é sustentável? Os Estados Unidos estão dando sinais de que terão um processo anêmico de recuperação. Por isso, o Federal Reserve (Fed), Banco Central americano, provavelmente terá que manter políticas de incentivos por muito mais tempo, mesmo que isso signifique criar bolhas nos ativos de risco dos países emergentes, entre eles, o Brasil, provocando uma forte valorização do real.

Mas os EUA vão correr esse risco? Com certeza. E isso implicará em um dólar mais barato, que facilita a compra de ativos de risco, como commodities e ações. A preocupação hoje do BC americano é com o desemprego e que não haja uma nova queda da atividade. Então, além de os EUA estarem com uma taxa de juros muito baixa, estão comprando títulos nos mercados, o que, por sua vez, dá um ganho aos detentores desses papéis, ou seja, os bancos. Essa é uma saída indireta para que o sistema financeiro fique mais capitalizado.

O Estado continuará, portanto, subsidiando a atividade? O governo americano não tem outra alternativa em curto prazo. Mas, quando as taxas de juros de curto prazo começarem a subir, provavelmente os bancos serão prejudicados. Por isso, a preocupação do Fed de não subir os juros agora. Mesmo que haja pequenos sinais inflacionários. A expectativa é de que as taxas só sejam elevadas a partir de 2012, como declarou um dos diretores do BC americano. Com o fim do pacote de incentivos fiscais, que tem data e hora marcada para acabar, só restarão os impulsos monetários.

Como os países emergentes vão lidar com as possíveis bolhas criadas com o dólar em baixa? No Brasil, estamos vendo suspeita de bolha na bolsa de valores e no mercado de imóveis. E, claro, no real valorizado. Acredito que o Ministério da Fazenda, ao passar a cobrar o IOF de 2% na entrada de capitais estrangeiros no país, apesar de não ser algo permanente e nem vá resolver a questão, uma vez que o problema do dólar é estrutural, está conseguindo conter a queda precipitada da moeda americana. O dólar está derrapando mais devagar. E, o mais importante ainda, o jogo das expectativas cambiais passou do Banco Central para o Ministério da Fazenda.

O que isso quer dizer? Parte do mercado acredita que se o dólar cair mais, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, pode aumentar a alíquota do IOF. Isso reduz o apetite que os investidores e bancos tinham em operar com posições vendidas em dólar (vender dólares sem tê-los, com a expectativa de comprar a divisa mais barata no futuro).

A Fazenda passou a ser a ameaça que o BC não representa, por ser mais imprevisível que o banco? Antes, o BC fazia swap reverso para evitar que o dólar caísse mais ainda. Os bancos apostavam na queda da moeda americana porque os juros estavam altos e o dólar caía. Mas, hoje, quem é que vai apostar na queda do dólar se há a possibilidade de a Fazenda aumentar a alíquota do IOF? Por que então ficar vendido em dólar? Isso tira um pouco o desejo especulativo de derrubar o dólar. Está nas mãos da Fazenda aumentar o IOF ou zerá-lo, no caso de uma subida repentina no dólar. Agora, neste momento, o IOF não impedirá a queda do dólar, porque as taxas de juros ainda são muito altas no Brasil e o mercado aposta que elas vão subir mais, para até 11,5% em 2010, um salto de 2,75 pontos em relação à atual taxa Selic, de 8,75%. À medida que se tem taxas futuras com prêmio, mais dólares entrarão no país.

Mas o senhor realmente acredita na alta dos juros no ano que vem? Em algum momento, a Selic vai subir, mas não será na proporção esperada pelo mercado. A alta virá da dispersão das expectativas em relação a 2011 e não porque a economia estará crescendo demais. O BC, no entanto, não deve sancionar tais apostas. Por isso, as atas das reuniões do Copom (Comitê de Política Monetária) e os relatórios de inflação deverão ser os mais neutros possíveis. Aos poucos, o mercado está reduzindo as expectativas de alta. Já apostou em elevação de 3,5 pontos percentuais e em alta ainda no primeiro trimestre de 2010. Hoje, não existe mais essa previsão.

A que o senhor atribui essa mudança de percepção: mais à atual queda da inflação ou à possibilidade de Henrique Meirelles ficar na Presidência do BC? A tudo isso junto. A inflação corrente está vindo mais baixa do que o esperado. O último dado que saiu do IPCA mostrou a inflação de serviços desacelerando. Era o que o pessoal estava olhando com lupa. Os preços administrados para o ano que vem devem ficar sob controle por causa da queda do dólar. E também os preços livres, com o dólar fraco, não há como subir muito. Então, a inflação do ano que vem pode ficar bem dentro do centro da meta (4,5%), ou até abaixo. Quanto à permanência de Meirelles no BC, cria-se a expectativa de continuidade na condução da política monetária.

Vamos ter uma travessia tranquila em 2010, mesmo sendo um ano de eleições presidenciais? Creio que sim. Teremos inflação baixa com a economia crescendo bem. A capacidade ociosa que temos hoje vai terminar no ano que vem, mas sem pressões inflacionárias por causa do dólar barato, que também fará com que os preços administrados se mantenham em um patamar baixo. Além disso, os preços dos serviços estão se desacelerando e a massa real de salários não está crescendo como antes (avançou 1,9% de janeiro a setembro). Para completar, a concessão de crédito às pessoas físicas avançou 8,6% em termos reais e, no ano que vem, provavelmente, apesar do crescimento econômico maior, haverá aumento da inadimplência. E mais: as taxas dos empréstimos às pessoas físicas e às empresas já estão subindo por causa do aumento das taxas futuras. Por isso, talvez não haja necessidade de aumentar a Selic e, se ela subir, isso se dará somente no fim de 2010.

Ou seja, se os juros subirem, isso só ocorrerá depois das eleições... Pode ser até antes, mas não no começo do ano. No primeiro semestre de 2010, está tudo favorável. As pressões inflacionárias podem acontecer mais no segundo semestre. Pode ser que, a partir do segundo semestre, o mercado já veja uma inflação maior para 2011 levando o BC a ter que subir os juros.

O senhor falou na continuidade da política monetária. A possibilidade do Meirelles ficar ajuda? É legítima a decisão pessoal dele de sair candidato. Mas essa perspectiva levou a cobrança de um adicional na taxa de juros, reflexo da falta da independência formal do BC. Se houvesse mandatos para a diretoria, não haveria dúvidas em relação à continuidade da política monetária. Mas ele tem todo o direito de sair do BC. Eu, particularmente, acredito que seria melhor ele ficar, pois ajudaria a estabilizar as expectativas inflacionárias. Mudanças, por mais que haja continuidade, sempre geram dúvidas, ainda mais em um ano eleitoral.

O que o mercado teme em relação aos dois principais candidatos à sucessão do presidente Lula, Dilma Rousseff e José Serra? Há muita incerteza em relação à condução das políticas monetária e fiscal no próximo governo. Como ficarão os juros? O próximo governo vai botar os pés no freio dos gastos públicos? Se as despesas do governo encolherem, haverá espaço para reduzir os juros. O atual governo adotou medidas anticíclicas corretas, na hora certa, o que salvou o Brasil da crise. O corte de impostos incidentes sobre carros e eletrodoméstico funcionou muito bem. A política fiscal não é um problema de curto prazo. O grande ponto é que os gastos públicos não podem contribuir para o crescimento da demanda. A partir de 2011, a economia já estará aquecida. Uma coisa é o gasto público com a demanda menos aquecida. Outra coisa é o gasto público com a demanda já aquecida.

E a questão cambial? O problema do câmbio não é fácil de resolver, porque é estrutural. Repito: a ajuda do governo para reverter parte da valorização do real deve vir do corte de gastos para abrir espaço para a queda dos juros.

É possível ver os juros caindo além dos atuais 8,75% ao ano? Acho que sim. Nossa taxa de juros é muito alta. O que está acontecendo é que o ano que vem é de mudanças. E pode haver dispersão de expectativas inflacionárias para 2011. Para evitar essa dispersão, o BC pode ser levado a subir a taxa de juros. Depois que as coisas se estabilizarem, vamos ter que derrubar os juros reais para níveis civilizados, o que até hoje não conseguimos. Estou falando de taxas entre 3% e 4% ao ano (além da inflação). O Brasil terá que aprender a conviver com juros menores para ter crescimento econômico mais sustentável. Se a Selic aumentar no ano que vem, é só para compensar a dispersão de expectativas inflacionárias. Hoje, todo cuidado é pouco para não gerar uma expectativa de alta por causa do dólar. Senão, vai entrar mais dólar ainda. O grande problema é essa avalanche. O país está bem em termos externos. Está com reservas maiores que a dívida, está solvente. O dólar pode entrar porque o investidor sabe que os recursos vão voltar. Não tem risco nenhum.

Existe um preço ideal para o dólar? Ninguém sabe isso. É claro que a cotação atual do dólar prejudica as exportações imensamente. Mas tem o lado positivo do dólar baixo. Por exemplo, as empresas estão tendo as dívidas reduzidas, os custos dos investimentos são menores, facilitando a importação de máquinas e de equipamentos. Agora, tem o lado da competição, que é uma realidade. A China hoje está tomando mercado brasileiro, porque a sua moeda, o yuan, está indexada ao dólar. Quando o dólar cai, cai a moeda chinesa. Com isso, você prejudica a criação de empregos no Brasil. É óbvio que o dólar barato está ajudando a importar máquina. Mas isso acontece uma vez só. Não se importa máquina continuamente. O mercado interno não pode crescer sem limites. Só se tem crescimento maior da economia ao se vender mais para o exterior. As exportações de manufaturados estão sendo prejudicadas.

Como o senhor viu o tumulto no BC com a saída do Mário Torós da diretoria de Política Monetária? Foi importante a troca rápida por Aldo Luiz Mendes? No Banco Central, não se pode demorar muito para se retirar nomes e anunciar nomes, por causa das expectativas, da formulação das taxas de juros. Você vê que, nos EUA, o presidente americano confirmou o presidente do Fed bem antes de tomar posse. Então, aqui, à medida que sai um diretor que tem importância na fixação da taxa de juros, que, por sua vez, influencia o câmbio, é importante que a mudança seja feita rapidamente, como aconteceu. Os mercados estão todos estabilizados. Política monetária não se admite vazio, senão aumenta o prêmio de risco. No caso de Torós, ele se confundiu com a instituição. Aí é que está o problema.