Título: Uma pedra fácil de espalhar
Autor: Luiz, Edson
Fonte: Correio Braziliense, 26/11/2009, Brasil, p. 14

Produzido de maneira simples, o crack se alastra pelo interior do país. Entorpecente pode ser preparado com um balde para mistura da pasta de cocaína e um pequeno fogão

Há 10 anos, ninguém imaginaria que o crack se espalharia pelo interior do Brasil. Hoje, é um dos principais produtos vendidos pelos criminosos por ser um negócio rentável. O aumento da produção de coca na Bolívia, o preço baixo e a facilidade para preparar e comercializar transformaram o crack em uma das drogas mais populares no país e num dos mais sérios problemas de saúde pública.

O negócio com o crack passou a ser rentável com o volume de drogas que chega principalmente da Bolívia, onde os plantios cresceram 6% no último ano, atingindo 30,5 mil hectares, segundo o relatório deste ano da Organização das Nações Unidas (ONU). Do total, 19 mil hectares são para consumo tradicional da população, que usa a folha da coca de diversas formas, inclusive na fabricação de refrigerantes e remédios. O restante, conforme autoridades policiais brasileiras, destina-se a plantações usadas para abastecer o narcotráfico. Hoje, grande parte da cocaína que chega ao Brasil é em forma de pasta base, matéria-prima para a fabricação do crack.

Por viciar mais rápido do que outras drogas e devido ao preço baixo, já existem quadrilhas especializadas na fabricação e distribuição da droga no Brasil. ¿Quem fuma crack tem uma pancada forte, mas que dilui muito rapidamente. Isso estimula a pessoa a fumar mais¿, afirma o perito Adriano Otávio Maldaner, chefe de Serviço de Perícia e Laboratório do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal.

Até agora, foram desbaratados três grupos: em Itabira (MG), no Recife ¿ que recebia o produto de São Paulo ¿ e em Pelotas (RS), que comercializava pelo menos 100kg da droga por mês. Somente nesses casos, calcula-se que pelo menos cinco milhões de pedras deixaram de circular pelo país. Porém, em todos os estados, foi registrado aumento nas apreensões. Ou seja, a circulação do crack cresceu. O mesmo ocorreu com a cocaína. Em Rondônia, por exemplo, a Polícia Federal apreendeu 336 quilos de pó em 2005, enquanto neste ano a quantia foi de 1,8 tonelada.

Laboratório O crack se espalha pelo país pela facilidade de fabricação em laboratórios caseiros, todos rústicos ¿ até simples baldes são usados para misturar a pasta base com permanganato de potássio e amoníaco. Depois, a droga é aquecida. ¿A fabricação ocorre em todos os lugares, até mesmo no quarto dos fundos de um apartamento¿, diz o coordenador-geral de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal, Luiz Cravo Dórea. Ironicamente, o aumento do crack também foi ocasionado por uma política adotada pelo Brasil em relação aos países vizinhos produtores de coca: a proibição de produtos químicos. Com isso, o refino da pasta é feito diretamente em território brasileiro.

Brasileiros na fronteira

Policiais federais avaliam que o comércio de cocaína é movimentado nas fronteiras do país por traficantes brasileiros foragidos na Bolívia. As investigações mostram que os grupos que atuavam na Colômbia estão migrando para países vizinhos, onde incrementaram o negócio utilizando carros roubados como moeda, principalmente para a aquisição de cocaína.

Hoje, o narcotráfico negocia a droga de várias formas para evitar prejuízos futuros. Um deles é evitar que aviões sejam abatidos no Brasil e, por isso, utilizam rotas alternativas e sem fiscalização. A figura dos líderes e grandes cartéis como na Colômbia da década de 1980 não existe mais. Os traficantes dividem seus territórios de atuação, mas também formam consórcios entre si para comprar a droga. O pó é adquirido por consignação ou empréstimos, mas os carros roubados no Brasil são a principal moeda de troca. Em Santa Cruz de la Sierra, por exemplo, existem pelo menos 12 mil veículos nessas condições.

Veículos roubados cruzam ilegalmente as fronteiras e são ¿esfriados¿ em garagens por algum tempo, recebem documentação falsa e logo são comercializados, sendo praticamente impossível o proprietário reavê-los, mesmo apresentando a documentação original. A figura do financiador é cada vez mais presente. Ele não aparece, mas como um ¿investidor anônimo¿ intermedia e diversifica investimentos, em bancos virtuais de determinadas facções criminosas, lojas de câmbio e transações eletrônicas, onde a ¿garantia¿ é a vida do cliente, e não mais notas promissórias.

Agência Segundo autoridades brasileiras, o governo boliviano tem tido boa vontade em ajudar a combater o tráfico na fronteira, mesmo sem contar com a Drug Enforcement Administration (DEA) ¿ a agência antinarcóticos dos Estados Unidos ¿, que deixou o país no ano passado. A Força Especial de Luta Contra o Narcotráfico (FELCN) e o exército boliviano têm agido sempre em conjunto com a Polícia Federal, mesmo com um efetivo de pouco mais de 1,2 mil homens.

Assim como ocorria no Paraguai e na Colômbia, onde o traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, refugiou-se e passou a comandar o tráfico de maconha e de cocaína, a Polícia Federal acredita que outros criminosos foragidos do Brasil atuam na Bolívia. Ou até mesmo agindo em território nacional, com intermediários na fronteira. (EL)

Organograma do tráfico

A cadeia do narcotráfico tem pelo menos quatro etapas, que vão do plantio até a distribuição pelas cidades. Todos os integrantes têm funções específicas, variando apenas os nomes

Primeira fase Nos plantios trabalham pelo menos seis tipos de pessoas com funções diferentes. São as seguintes:

Lavrador: encarregado pelo plantio, cultivo e colheita da folha de coca Fiscal: é a pessoa encarregada pelo suporte ao lavrador Peão: responsável pelos serviços braçais na lavoura de coca Aviador: quem financia os insumos agrícolas Varador: transporta as folhas Vigia: faz a segurança dos plantios

Segunda fase Quando começam os trabalhos de refino da cocaína, muitas vezes ainda nos plantios. São pelo menos seis pessoas:

Pisoteiro: é o encarregado pela fabricação da pasta base Administrador: é o chefe do laboratório Cargueiro: pessoa encarregada pelo transporte da pasta base Agenciador: faz os contatos com os compradores Guarda: encarregado pela segurança Tanqueiro: quem fornece suporte financeiro ao laboratório

Terceira fase É quando a pasta base de cocaína passa pelo seu processo de transformação, onde são utilizadas pelo menos seis pessoas:

Fabricante: é praticamente o dono do laboratório Administrador: pessoa que gerencia os locais Cozinheiro: encarregado pelo processo químico Obreiro: é quem faz os trabalhos braçais Maleiro: quem embala a droga Provedor: encarregado pelo financiamento

Quarta fase É quando a cocaína já está em fase de comercialização, em grandes ou pequenas quantidades. O organograma é o seguinte:

Negociante: normalmente quem vende grandes volumes de pó Coordenador: administrador das vendas Despachante: quem confere a cocaína recebida Contador: responsável pela contabilidade da quadrilha Mula: Encarregado do transporte da droga Capanga: responsável pela segurança Cobrador: quem recebe o dinheiro dos negócios Médico: quem executa os inimigos Mesclador: que mistura outros produtos ao pó Aviaõ: quem transporta a droga