Título: Poder público é coadjuvante no tratamento
Autor: Teixeira, Marcionila
Fonte: Correio Braziliense, 29/11/2009, Brasil, p. 12

Entidades não governamentais respondem por sete em cada dez instituições que oferecem atendimento a dependentes químicos no país

A resposta do sistema público de saúde é irrisória perto da devastação provocada pelo crack. Prova disso é que quase 70% das instituições que oferecem tratamento a dependentes químicos no Brasil não pertencem ao governo, segundo um mapeamento de 2006/2007 feito pela Secretaria Nacional Antidrogas. Na maior parte das vezes, são comunidades terapêuticas que sobrevivem de convênios com prefeituras e outros órgãos públicos, empresas, doações e da colaboração do próprio paciente. Idealizados para serem unidades especializadas em álcool e drogas, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) representam apenas 12,21% das unidades de tratamento do país. De outro lado, os hospitais gerais, que deveriam funcionar complementando o atendimento, contam com uma quantidade insignificante de leitos psiquiátricos: 2.568 para todos os tipos de transtornos mentais.

Diante de tal realidade ¿ que levou até o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a admitir recentemente que o tratamento da dependência química no Brasil é falho ¿ o viciado pobre, sem recursos para pagar uma clínica particular, tem de vencer um primeiro desafio, que é conseguir a vaga. A outra guerra começa lá dentro, já com uma batalha difícil de superar: as crises iniciais de abstinência.

Para Vagner*, viciado por dois anos em crack, os primeiros nove dias foram de diarreia, vômitos e suor cheirando à pedra. ¿Era como se o crack estivesse saindo de dentro de mim. Desesperado, eu só queria ir atrás da pedra¿, conta o interno, há um mês numa comunidade terapêutica no interior de São Paulo. Na horta da casa de apoio, ele se recorda das atividades desempenhadas quando trabalhava na lavoura da laranja, em Taquaral. Casado e pai de dois adolescentes, carrega uma história comum entre outros usuários de crack. ¿Perdi tudo, gastei quase R$ 40 mil em pedra. Não sei como ainda estou vivo¿, recorda o homem de 42 anos.

Saulo* também se considera um sobrevivente. Na oitava internação desde 2005, depois de roubos, viver como morador de rua, morar numa boca de fumo e perder contato com os cinco filhos e a mulher, ele tenta chegar ¿limpo¿ ao fim de cada dia. ¿Quando dirigia a carreta de uma grande loja de eletrodomésticos, vendia o óleo do caminhão para comprar crack. Já troquei uma TV de plasma que roubei do meu irmão por 50 pedras¿, lembra o rapaz de 33 anos. Quando se tornou morador de rua, chegou a ganhar da assistência social de Ribeirão Preto uma passagem para retornar a Barrinha, sua cidade natal, mas vendeu o bilhete para saciar a fissura. ¿É igual ao prazer sexual, uma sensação muito boa, mas que acaba logo¿, descreve.

Reincidência// Sandro também já viveu o drama do retorno à pedra. ¿Depois de ficar um ano e dez meses internado, passei dois meses em pé e depois caí¿, conta o cortador de cana, que acumula 29 safras. ¿Desde muito tempo sou usuário de álcool, depois fui para a maconha, a cocaína, até que cheguei ao crack. Vendi tudo o que tinha em casa, meus móveis, roupas, para fumar¿, conta o homem de 42 anos. No sexto mês de internação, a habilidade manual pôde ser conferida nos barcos, entre outros objetos de madeira, que Sandro constrói numa marcenaria improvisada da comunidade onde vive.

A valorização dos internos vem da percepção de melhora e por saberem o quanto é difícil conseguir estar no espaço. Humberto de Souza, ex-dependente, já teve uma clínica em Pradópolis, interior de São Paulo. Oito em cada dez internos eram lavradores, a maioria viciados em álcool e na pedra. Depois de dois anos em funcionamento, o local teve de ser fechado. Hoje, existe apenas uma placa indicando a antiga casa. ¿Sem convênios permanentes, fica impossível manter um lugar onde o custo de cada paciente não fica em menos de R$ 600 por mês¿, explica o homem de 49 anos, que ainda sonha montar uma nova clínica. ¿Faz parte do meu projeto de vida, preciso ajudar os outros como fui ajudado¿, completa. Hoje, ele se dedica a dar palestras em comunidades de todo o país.

* Nomes fictícios

* Nomes fictícios

Demanda por leitos aumenta no Paraná

SAMANTA SALLUM Enviada Especial

Curitiba ¿ O número de atendimentos a usuários de crack no Centro Psiquiátrico Metropolitano em Curitiba subiu 10 vezes em quatro anos. Passou de 200 em 2005 para cerca de 2 mil em 2009. Também existem clínicas particulares de desintoxicação no centro de Curitiba e nas redondezas. São necessários 45 dias de internação, com diárias de até R$ 400. A Clínica Nova Esperança, do casal Araceles e Celso Maçaneiro, é uma delas. Segundo Araceles, que trabalha com dependentes desde 1989, o crack trouxe um novo perfil de paciente. A clínica teve de ser cercada para evitar fugas. Conter os pacientes no período da abstinência também ficou mais difícil.

O espaço comporta 29 internos. Há lista de espera. ¿Recebemos pacientes de todo o Brasil e também do Paraguai e da Argentina¿, conta Celso. Histórias de recaídas são comuns. É com a ¿oração da serenidade¿ que os dias são iniciados na clínica. ¿Já cansei do meu velho jeito de ser, serei mais firme do que sempre fui, mais forte do que um dia sonhei¿, são as palavras pregadas nos murais. Empresas como Petrobras e Banco do Brasil têm convênios com a clínica e encaminham funcionários para lá.

16 É o numero de Unidades da Federação no Brasil que ainda não têm Caps do tipo III, único que atende 24 horas. O restante fecha às 18h.

2.568 É a quantidade de leitos reservados em hospitais gerais no país para pacientes psiquiátricos, entre eles os usuários de drogas e álcool. O número é irrisório diante da demanda.

67,7% Proporção de entidades não governamentais entre as 1.256 instituições que oferecem tratamento para dependentes químicos no país.

R$ 117 milhões Dinheiro que o governo federal anunciou para ser usado na prevenção e no combate ao uso de drogas no país até 2010. O aumento do número de Caps, do valor das diárias para dependentes químicos e até uma pesquisa sobre os usuários de crack serão custeados com o recurso.

Fonte: Ministério da Saúde e Secretaria Nacional Antidrogas