Título: Soropositivos discriminados
Autor: Colares, Juliana
Fonte: Correio Braziliense, 29/11/2009, Brasil, p. 16

Às vésperas do Dia Mundial de Combate à Aids, portadores de HIV lutam para fazer valer seus direitos de cidadãos

Apesar dos avanços garantidos por leis há duas décadas, Felipe*, de 10 anos, ainda sofre preconceito

Aos 10 anos, o pernambucano Felipe (nome fictício) não quer mais estudar. Ele guarda na memória lembranças da rejeição sofrida na escola. A perseguição teve início quando sua mãe avisou à direção que ele era soropositivo. Primeiro foram desculpas com a intenção de fazê-lo voltar para casa sem que ele assistisse às aulas. Depois, a recusa da professora em levar o garoto, que também tem dificuldade de locomoção, ao banheiro. Terminou com o menino em depressão e uma queixa prestada contra o colégio na Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente.

Felipe teve as atividades restringidas e, finalmente, foi privado do convívio social com seus colegas ¿ um flagrante desrespeito à Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids. Aprovado há 20 anos, durante o Encontro Nacional das ONGs, o documento ainda é pouco conhecido. No Brasil, a doença foi registrada pela primeira vez em 1983. De lá pra cá, muito se avançou na criação de leis, portarias, decretos e documentos como esse. Mas permanece o desafio de colocá-los em prática. Na próxima terça-feira, Dia Mundial de Combate à Aids, a luta de 630 mil soropositivos por cidadania será lembrada.

¿Um dia, a professora falou que tinha um rato morto em cima da telha da sala de aula e mandou meu filho voltar para casa, mas todas as crianças continuaram estudando. No outro dia, a mesma coisa. A professora chegou a falar para o meu filho mais velho que não ia mais dar aula para o Felipe, que não tinha essa obrigação¿, contou a mãe do garoto, que preferiu não ser identificada. E não foi só isso. A diretora chegou a exigir que ela apresentasse um laudo com o diagnóstico do menino, num ato de desrespeito à declaração de 1989 e a uma portaria interministerial de 1992, segundo as quais os indivíduos portadores de HIV não são obrigados a informar sua condição a qualquer membro da comunidade escolar. E mais: ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura o direito de todo estudante de ser respeitado por seus educadores.

Segundo Alaíde Silva, coordenadora da ONG Viva Rachid, a entidade recebeu mais de 20 casos de discriminação ocorrida no ambiente escolar durante os seus 15 anos de funcionamento. Muitos, acredita, permanecem no silêncio. ¿A gente compreendia no início que o preconceito se dava, também, por falta de informação. Hoje, com quase 30 anos de epidemia, não há mais como acreditar que a desinformação seja o principal motivo¿, diz. No mercado de trabalho, casos de desrespeito aos direitos de quem vive com HIV também tomam corpo. Seja com a inclusão ilícita da exigência do teste de HIV em concursos, seja com demissões injustificadas. Foi assim com Roberto (nome fictício), que teve uma vaga negada quando contou que tinha Aids. ¿Ele (o empregador) me disse que não podia me contratar. Falou: `Você vai ao banheiro, faz xixi na tampa do vaso e outra pessoa pega (a doença)¿. Expliquei que não pega assim, mas ele disse que quando as pessoas da empresa descobrissem não iriam querer trabalhar comigo e que tem bons e antigos empregados e não poderia me contratar por isso¿, disse.

¿Somos privilegiados em leis. O que é preciso é saber fazer valer esses direitos. Essa é a questão mais difícil: a da conquista da cidadania¿. A afirmação é da advogada Fátima Baião, que desde 1999 faz parte do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids. Ela lembra as vitórias alcançadas desde a década de 80, que vai dos privilégios sobre o FGTS e o PIS/Pasep ao acesso universal e gratuito aos remédios necessários ao tratamento da Aids, conquistado em 1996. No país, existem 200 mil pessoas em tratamento com medicamento antirretroviral. Dezenove antirretrovirais estão disponíveis no Brasil. O Ministério da Saúde (MS) garante que incorpora os medicamentos mais recentes lançados no mundo após análise feita por médicos do MS. Neste momento, dois estão em avaliação. Também houve avanços na organização de serviços de referência para diagnóstico e tratamento médico, social e psicológico, além de campanhas de prevenção. Ações que garantiram reconhecimento internacional ao programa brasileiro.

Somos privilegiados em leis. O que é preciso é saber fazer valer esses direitos. Essa é a questão mais difícil: a da conquista da cidadania

Fátima Baião, advogada

Negligência em hospital

Mesmo no âmbito da saúde, direitos básicos ainda são desrespeitados. Vez por outra, por exemplo, falta algum medicamento. Em Pernambuco, há pouco mais de uma semana, houve desabastecimento de AZT injetável devido a um problema de fornecimento do laboratório que produz a droga, segundo o coordenador do programa estadual de DST/Aids, François Figueiroa. Ele promete que o remédio estará disponível no estado no início do próximo mês.

O Ministério da Saúde planeja montar estoques de segurança a partir do próximo ano. Mas os problemas não se restringem aos medicamentos. Os números de transmissão vertical da infecção (mãe para bebê) são baixos. Mas o risco ainda existe.

Tarde demais Ao engravidar pela segunda vez, Maria (nome fictício) realizou o pré-natal na Maternidade Barros Lima no Recife. O exame de HIV foi solicitado, mas toda a gravidez se passou sem que lhe dessem o resultado. No dia do nascimento, foi feito o teste rápido. Ainda assim, a menina nasceu por parto normal e a mãe continuou sem saber que estava infectada.

Ela diz ter recebido orientação na maternidade para dar de mamar. Três meses depois, recebeu da unidade de saúde o resultado do exame. Era tarde. A filha, hoje com cinco anos, também vive com HIV. Com a ajuda da ONG Gestos, Maria moveu uma ação por negligência contra a gestão municipal.

A assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde do Recife informou que o caso corre em segredo de Justiça e que só vai se pronunciar quando houver sentença. O coordenador do programa estadual de DST/Aids afirma que situações como essa são raras atualmente. Mas revela que o teste rápido só está disponível em cerca de 55% das maternidades. Ele acredita que percentual semelhante reflete a cobertura do teste durante o pré-natal. Um exemplo de que ainda há muito o que avançar. (JC)