Título: Jornada rígida
Autor: Pires, Luciana
Fonte: Correio Braziliense, 09/12/2009, Economia, p. 10

Planejamento ataca decisão da Anatel de conceder horário de trabalho flexível a servidores e determina desconto em folha

Visto pelo governo como uma prática que pode influenciar outros órgãos da administração federal, o sistema de jornada flexível implantado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) é alvo de novos ataques por parte do Ministério do Planejamento. Nota técnica produzida pela Secretaria de Recursos Humanos (SRH) e obtida pelo Correio desqualifica as mudanças na rotina de trabalho da agência, determina a anulação imediata da portaria que mexeu no expediente e manda que o órgão desconte as horas não trabalhadas dos salários dos empregados. Recheado de palavras duras, o documento trata como ilegais as alterações promovidas pela Anatel.

A análise de 17 páginas tem data de 1º de dezembro. O texto faz referências à boa parte da legislação disponível sobre o setor público para justificar que, apesar de autônoma e independente, a Anatel não tem competência para fazer as alterações que fez. ¿Esta secretaria de recursos humanos não é contra a inovação de novas gestões ou da melhoria da qualidade de vida dos servidores públicos federais. Todavia, tais medidas devem obrigatoriamente se pautar na boa prática administrativa e, sobretudo, no respeito às normas que regem a administração pública, uma vez que a legalidade é princípio basilar dessa esfera administrativa¿, reforça a SRH.

Na Anatel, o funcionário que opta por cumprir a jornada não convencional tem expediente de sete horas corridas por dia, sem direito a intervalo para almoço, com outras cinco horas de sobreaviso ao longo da semana ¿ caso seja necessário, o chefe da área solicita a permanência do servidor por mais uma hora do dia. O sistema de 35 horas semanais mais cinco foi inaugurado em julho e desde então vem estimulando outros setores do funcionalismo a adotá-lo. Os servidores da agência aprovam a iniciativa e dizem que as críticas feitas pela SRH não se sustentam. Como forma de contra-atacar o governo, uma parte dos empregados prepara um abaixo-assinado e cogita entrar na Justiça.

Advertindo ser seu papel exercer o controle sobre os demais agentes da burocracia de Estado, a SRH desconsidera os argumentos encaminhados pela Anatel. A agência repassou justificativas que sustentariam a flexibilização, informando que a produtividade de seus funcionários teria aumentado. Os advogados da agência defendem também o direito do órgão reorganizar-se, realizar ajustes em sua estrutura e regular o horário de seus servidores. Procurada pelo Correio, a Anatel não se manifestou.

A Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras (Aner) vê com preocupação a investida do governo. Segundo Paulo Stangler, presidente da entidade, a jornada de trabalho possibilitou ganhos funcionais e estimulou as equipes. ¿A flexibilização possibilitou a adequação do padrão de vida do funcionário¿, resume Stangler. A Aner atuou com a direção da Anatel para definir os critérios da jornada flexível.

Efeito imediato

A SRH, conforme a nota técnica, não abre mão da jornada clássica: ¿Todos os servidores dessa agência deverão cumprir carga horária diária de oito horas, respeitando-se a carga horária semanal de 40 horas¿, reforça o comunicado interno. Para o Planejamento, o mecanismo de sobreaviso é um artifício e ¿tem como objetivo burlar o Artigo 44 da Lei nº 8.112, de 1990, que determina o desconto da remuneração do servidor pelas horas efetivamente não trabalhadas¿.

O governo espera colocar fim à polêmica o quanto antes. O Planejamento exige que a Anatel anule, ¿com a urgência que o caso requer¿, os artigos da portaria interna que estão em desacordo com a lei. Os descontos nas remunerações dos empregados da agência que não cumpriram o expediente padrão deverão ser aplicados nos contracheques de julho a novembro. Em relação ao mês passado, completa a SRH, ¿é facultada aos servidores a compensação das horas não trabalhadas. Por último, a secretaria determina que a Anatel precisará apresentar à auditoria de recursos humanos, dentro de 15 dias, a relação completa das compensações de horas feitas pelos funcionários.

A flexibilização possibilitou a adequação do padrão de vida do funcionário

Paulo Stangler, presidente da Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras (Aner)

Análise da notícia Sem acordo

Uma iniciativa inovadora, mas que acabou se transformando em problema. Assim se resume a novela que desde o meio do ano coloca órgãos da administração pública em lados opostos da mesa. Perdem a Anatel e o Ministério do Planejamento. Já foram para o ralo a diplomacia, a busca pelo consenso e a tentativa civilizada de encontrar uma solução que seja, ao mesmo tempo, adequada (do ponto de vista legal) e sensata (sob o aspecto de gerenciamento de recursos humanos).

O setor público é um delicado ¿ecossistema¿. Qualquer mexida é motivo para instabilidades: há reações de cima para baixo, normas brotam do chão, o servidor fica sem saber a quem seguir. Mudar não é fácil. Ainda mais quando os efeitos da mudança não estão ao alcance das mãos, não viram estatísticas. No caso da Anatel, trocar 40 horas por 35 horas semanais parece um mau negócio, mas os funcionários dizem que não, afirmam que trabalhar sem parar é bom, que as equipes estão motivadas.

Mas, e a lei? A lei é clara, imperativa. Ai daquele que a desrespeita! Assim pensa o governo, que neste caso posa de ¿senhor¿ da razão. O ponto talvez esteja justamente na capacidade de enxergar além do que as regulamentações permitem. Tarefa difícil, ainda mais quando o bate-boca está instalado e ninguém envolvido na confusão percebe direito quando é a hora de dizer chega. (LP)