Título: Clima de desconfiança
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Fonte: Correio Braziliense, 09/12/2009, Ciência, p. 20

Divulgação de texto que teria sido produzido por país anfitrião com apoio dos EUA e do Reino Unido ameaça negociações na conferência sobre o clima

COP-15 AGENDA DO MEIO AMBIENTE CÚPULA DE PAÍSES TENTA SUPERAR IMPASSES PARA CUMPRIMENTO DE METAS CONTRA O AQUECIMENTO GLOBAL, DE 7 A 18 DE DEZEMBRO, EM COPENHAGUE

Uma possível estratégia arquitetada em conjunto por Dinamarca, Reino Unido e Estados Unidos para aumentar o poder dos países ricos e diminuir a importância da Organização das Nações Unidas (ONU) na discussão sobre o aquecimento global causou a revolta de ambientalistas e das nações em desenvolvimento no segundo dia da 15ª Conferência das Partes (COP-15), a cúpula sobre mudanças climáticas que reúne delegações de 192 países em Copenhague. A crise foi desencadeada pela divulgação de um projeto de texto elaborado pelo governo dinamarquês que estabelece limites desiguais de redução das emissões per capta ¿ favorecendo os países mais ricos ¿ e sugere que o Banco Mundial administre os recursos destinados ao controle da temperatura do planeta, o que diminuiria o papel da ONU.

Divulgado ontem pelo jornal britânico The Guardian, e depois por outros veículos de imprensa, o texto foi interpretado como uma proposta à parte a ser apresentada pelo país anfitrião, com apoio dos EUA e do governo britânico. Seria uma espécie de rascunho do que viria a ser o resultado da COP-15. Imediatamente, as nações mais pobres e as organizações não governamentais denunciaram a Dinamarca por ignorar o ponto de vista dos países em desenvolvimento, aumentando a desconfiança entre as nações ricas e em desenvolvimento.

Representantes do G-77, grupo de países do qual o Brasil faz parte, chegaram a dizer que o documento representa uma ¿ameaça¿ para o sucesso do encontro. ¿(O documento) é uma grave violação que ameaça todo o processo de negociação de Copenhague¿, declarou Lumumba Stanislas Dia Ping, chefe da delegação sudanesa que preside atualmente a coalizão. ¿Os membros do G-77 não deixarão as negociações nesse estágio. Não podemos nos permitir um fracasso em Copenhague¿, acrescentou.

¿O texto proposto pelo primeiro-ministro dinamarquês é fraco e mostra a posição elitista e sem transparência da presidência dinamarquesa¿, criticou Kim Carstensen, da ONG WWF. ¿As táticas de negociações debaixo dos panos, sob a presidência dinamarquesa, mostram o desejo de agradar os países ricos em vez de servir à maioria das nações que pedem uma solução justa e ambiciosa¿, acrescentou. Para Martin Kaiser, do Greenpeace, o anúncio ¿alimenta a desconfiança na cúpula sobre o clima¿.

A ministra dinamarquesa do Clima, Connie Hedegaard, negou que a intenção de seu país seja forçar um documento sem a participação de todas as nações. ¿Não existe um texto. Estamos há semanas e meses consultando diversos países. É o nosso trabalho¿, afirmou. ¿Muitos textos circulam, mas o documento que talvez seja aprovado aqui ainda não existe, então ninguém pode tê-lo visto¿, acrescentou. A notícia transformou radicalmente o clima de otimismo do primeiro dia de conferência, causado pela iniciativa dos Estados Unidos de reconhecer que o aquecimento global é resultado das emissões de carbono. O secretário-executivo das Nações Unidas para o Clima, Yvo de Boer, informou, por meio de nota, que o texto era informal e que o único documento formal que existe está nas mesas dos integrantes da conferência.

Brasil

O embaixador Sérgio Serra, que integra o grupo de negociação brasileiro, adotou um tom comedido ao abordar o assunto. ¿O papel foi distribuído, mas recolhido em seguida. Considero legítima a função da presidência do evento em apresentar um texto para facilitar as discussões¿, disse. Mas acrescentou: ¿Não quero prejulgar, mas esse vazamento de informação prejudicou a efetividade do texto. Não podemos deixar que esse tipo de confusão leve ao caos¿.

No documento, estaria colocada a intenção dos países ricos de separar o Brasil, a China e a Índia do grupo de países pobres, que, segundo o Protocolo de Kyoto, não são obrigados a estabelecer metas numéricas de redução das emissões de carbono. A diferenciação desses três países em relação aos demais em desenvolvimento foi tema de discussões ontem. Uma parte significativa dos negociadores acredita que Brasil, China e Índia não devem, por exemplo, receber ajuda do fundo internacional a ser criado para ajudar os mais pobres a desenvolverem tecnologias limpas e migrarem assim para uma economia de baixo carbono. As três nações, segundo os defensores desse ponto de vista, já têm condições de realizar a transição e saíram fortalecidas da crise econômica mundial.

O secretário executivo das Nações Unidas para o Clima, Yvo de Boer, no entanto, rebateu esse argumento. ¿Os grandes países (em desenvolvimento) também devem ter acesso (ao fundo), mas isso vai depender de cada projeto apresentado¿, afirmou. O governo brasileiro já havia se manifestado sobre esse tema na segunda-feira. ¿O financiamento tem que ser para todos os países. Nós faremos mais e melhor se tivermos acesso a recursos internacionais¿, afirmou então o negociador-chefe do Brasil, embaixador Luiz Alberto Figueiredo Machado.

Década atual será a mais quente da história

Em meio à crise provocada pela divulgação do chamado ¿texto dinamarquês¿, novos estudos foram divulgados, mostrando a importância de que avanços significativos sejam feitos na conferência. Um deles mostra que a década atual registrará as maiores temperaturas desde as primeiras medições, em 1850. ¿A década 2000-2009 será provavelmente a mais quente dos registros. Mais quente inclusive que a de 1990, que, por sua vez, foi mais quente que a de 1980¿, afirmou Michel Jarraud, secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial (WMO, na sigla em inglês). Ele disse ainda que os dados provisórios indicam que 2009 se anuncia como o quinto ano mais quente desde 1850 em termos de temperatura média da superfície terrestre. Os resultados definitivos serão conhecidos em março de 2010.

Em Londres, o Escritório de Meteorologia do Reino Unido divulgou dados correspondentes a centenas de estações em todo o mundo que demonstram que a temperatura da superfície terrestre aumentou consideravelmente nos últimos 150 anos (veja gráfico). O dado de maior destaque do levantamento é que a temperatura global aumentou na média mais de 0,15ºC por década desde meados dos anos 1970.

Custo

Outra pesquisa apresentada ontem aponta que um fracasso da conferência custará cerca de US$ 500 bilhões anuais à economia mundial. ¿Se não forem tomadas medidas imediatas para reduzir as emissões de CO2, esse é valor que será preciso para recuperar o atraso e impedir que a temperatura do planeta aumente em mais de 2ºC¿, declarou o diretor-geral da Agência Internacional de Energia (AIE), Nobuo Tanaka. Segundo ele, a AIE não espera que um tratado internacional obrigatório saia de Copenhague. ¿É impossível¿, afirmou.

Segundo relatório da AIE, as cidades são as principais causadoras do aquecimento global. Em 2030, as emissões urbanas representarão 76% do total mundial, contra 71% em 2006, alertou a AIE. ¿As autoridades locais têm um importante potencial para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa e incentivar a adoção de energias renováveis. As cidades que avançaram de forma dinâmica para promover as energias renováveis obtiveram resultados estimulantes¿, ressaltou.

Entre as 12 cidades cujos governos locais foram mais longe que os nacionais na luta contra as mudanças climáticas, a AIE citou a ilha de El Hierro, nas Ilhas Canárias, como exemplo. Os 10 mil habitantes da ilha dependem exclusivamente da energia renovável ¿ no caso, eólica ¿ para o consumo de eletricidade. Bombas alimentadas pela força dos ventos levam depósitos de água que fornecem eletricidade hidráulica em períodos de consumo elevado.