Título: Pôquer pós-eleitoral
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 02/12/2009, Mundo, p. 18

Cúpula ibero-americana abre espaço para reconhecer novo governo. Lula mantém recusa, mas governo admite rever posição

O governo brasileiro saiu mais cedo da reunião de cúpula ibero-americana em Estoril, Portugal, mas deixou marcada sua posição sobre a crise política em Honduras. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou mais uma vez que não reconhecerá a eleição presidencial realizada no domingo, que teve como vencedor o candidato do Partido Nacional, Porfírio Lobo, e descartou a ideia de vir a conversar com o eleito, ao menos por ora. ¿Esse cidadão tem o direito de fazer as gestões que considerar necessárias. Se acontecer algo novo, vamos ver, vamos esperar. O problema agora é muito mais de Honduras que do Brasil¿, afirmou Lula antes de partir para a Ucrânia.

O presidente aproveitou para responder ao colega da Costa Rica, Óscar Arias, que classificou como ¿dupla moral¿ a posição brasileira de reconhecer as eleições iranianas, marcadas por denúncias de fraude, mas não as hondurenhas. ¿O presidente do Irã concorreu nas eleições, teve 62% dos votos. Não se pode questionar o discurso da oposição, mas houve eleição dentro de uma regra em que não foi ferida a Constituição do país. Não dá para comparar com Honduras¿, respondeu. Segundo Lula, Arias também tinha condicionado o reconhecimento do novo governo de Honduras à recondução do presidente Manuel Zelaya ao poder, antes da realização de eleições. ¿Daqui a pouco, o errado é o Zelaya e o benfeitor é o golpista¿, completou Lula.

Fontes diplomáticas espanholas, porém, afirmam que o presidente brasileiro tenta ¿ganhar um pouco de tempo¿ para observar o comportamento político de Lobo. O assessor para de Lula para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, pediu ¿sinais fortes¿ da parte de Lobo como gesto destinado a abrir caminho para o diálogo. A Espanha é um dos países que defenderam uma posição flexível, que permitisse negociar com o novo presidente, apesar de não reconhecer expressamente as eleições.

Divididos, os representantes dos países ibero-americanos só conseguiram apoiar uma declaração que condena o golpe de Estado em Honduras e respalda o diálogo, mas sem chegar a um consenso sobre a legitimidade das eleições. Os governantes da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), liderada por Venezuela e Cuba, difundiram um texto à parte pedindo ao bloco ibero-americano que não reconheça o novo governo, uma vez que isso ¿legitimaria o golpe de Estado¿ que tirou Zelaya do poder, em 28 de junho. ¿Os membros da Alba alertam a comunidade ibero-americana e internacional de que reconhecer essas eleições ilegais e ilegítimas constitui um nefasto precedente, que colocará em risco a estabilidade e a existência das democracias na América Latina¿, diz o comunicado. A Alba também reiterou a decisão de impor ¿sanções econômicas e comerciais¿ ao governo interino de Roberto Micheletti.

Por outro lado, países aliados aos Estados Unidos, como Peru, Colômbia e Panamá, defenderam o reconhecimento do mandato de Porfirio Lobo. Apesar de lamentar as circunstâncias ¿anormais¿, a União Europeia (1)também qualificou a eleição em Honduras de ¿passo adiante¿, repetindo o termo utilizado na véspera pelo governo americano. Um texto conjunto sobre o assunto foi enviado às capitais dos países-membros, e a expectativa é de que seja aprovado hoje. Três deputados do Parlamento Europeu apresentaram um relatório no qual dão aval ao processo. ¿Essas eleições se definem em três palavras: entusiasmo, democracia e transparência¿, destacou Eduard Kozusnik, do Partido Reformista e Conservador da República Tcheca. Lobo, vencedor da discutida votação, disse em entrevista à emissora americana CNN, que recomendou a Zelaya ¿aceitar o mandato do povo, que o elegeu há quatro anos e agora escolheu um novo governo¿.

1 - Sob nova direção A Europa inaugura um modelo de organização política e jurídica que caminha para o supranacionalismo. Entrou em vigor ontem o Tratado de Lisboa, que estabelece, entre outras novidades, a figura de presidente da UE com mandato pessoal, e a do alto representante para Política Externa, uma espécie de superchanceler do bloco. O belga Herman van Rompuy, de 61 anos, novo presidente da UE, e a britânica Catherine Ashton, escolhida alta representante, substituíram ontem o espanhol Javier Solana na tarefa de representar externamente cerca de 500 milhões de europeus.

ADIÓS, BRASIL Carlos Reina assessor do presidente deposto Manuel Zelaya, deixou ontem o prédio da embaixada brasileira em Tegucigalpa, onde passou os últimos 71 dias abrigado, assim como o próprio Zelaya. O governante afastado mantém a exigência de ser reconduzido ao poder e tenta obter da comunidade internacional um rechaço à eleição presidencial de domingo, mas multiplicam-se os sinais de que o vencedor, Porfirio Lobo, poderá romper o isolamento externo imposto ao presidente de fato, Roberto Micheletti.

Mujica busca aliança

O presidente eleito do Uruguai, José Mujica, não perdeu tempo para iniciar as articulações em torno de uma possível composição política com os partidos de oposição. Reuniu-se na tarde de segunda-feira com o líder do Partido Colorado, Pedro Bordaberry, e marcou para a sexta um encontro com o ex-presidente Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional (blanco), a quem derrotou no segundo turno das eleições, no domingo ¿ Mujica teve 53% dos votos, contra 43% obtidos por Lacalle. Segundo o vencedor, o propósito do encontro será ¿analisar temas¿ da agenda política doméstica, como educação, segurança, energia e meio ambiente, ¿com um espírito aberto¿.

Ex-guerrilheiro de esquerda nos anos 1960-70, como um dos principais dirigentes do Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros, Mujica reafirmou na campanha o estilo negociador que cultivou em duas décadas de carreira política institucional, desde a anistia de 1985. Sua oferta de incluir oposicionistas na equipe de governo provocou uma reação inicial positiva. ¿Estamos dispostos a conversar e, no momento, não descartamos nada ¿ nem a possibilidade de integrar o gabinete¿, disse uma fonte oposicionista à agência de notícias France-Presse. Bordaberry, que teve 17% dos votos no primeiro turno e apoiou Lacalle no segundo, foi reticente após a reunião com o presidente eleito: ¿Não estamos em busca de uma coalizão, mas de soluções para os problemas dos uruguaios¿. O deputado Daniel Bianchi, porta-voz da direção colorada, reforçou o tom: ¿Não discutimos cargos, mas conteúdos (de programa)¿.

A Frente Ampla, coligação esquerdista que elegeu Mujica e governa desde 2004, com Tabaré Vázquez, manteve maioria absoluta na Câmara dos Deputados e no Senado, porém pela contagem exata. Para não correr riscos, o presidente eleito procura atrair ao menos setores da oposição.

Argentina

Mujica já tem na agenda também um primeiro encontro internacional ¿ e não será com o colega brasileiro, por quem nutre afeição pública. O presidente eleito aproveitará a cúpula do Mercosul, marcada para a próxima segunda-feira em Montevidéu, para reunir-se com a chefe de Estado argentina, Cristina Kirchner. Os dois países tiveram nos últimos anos um contencioso em torno da instalação de fábricas de papel e celulose do lado uruguaio do Rio Uruguai, um dos marcos de fronteira.