Título: Mudança de sexo em pauta
Autor: D'Elia, Mirella; Souza, Giselle
Fonte: Correio Braziliense, 01/12/2009, Brasil, p. 10

Supremo se reúne para discutir se o Estado tem a obrigação de arcar com os custos da cirurgia de transgenitalização dos cidadãos que desejam trocar de gênero.

Pela primeira vez, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima da Justiça brasileira, vai se reunir para discutir um assunto para lá de polêmico: se o Poder Público deve ser obrigado a bancar cirurgias de mudança de sexo. Desde 2002, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) autoriza o procedimento no país. Em tese, qualquer brasileiro ou brasileira pode se submeter a uma cirurgia para trocar de sexo, desde que atenda às exigências do texto. Mas, na prática, a demora em conseguir realizar o sonho faz com que muitas pessoas entrem na Justiça. Segundo o Ministério da Saúde, só há quatro hospitais no país que fazem a chamada transgenitalização ¿ a mudança de sexo. A fila de espera chega a 500 pessoas (veja quadro na página ao lado).

O imbróglio nunca chegou ao plenário, que reúne os 11 integrantes da Suprema Corte. Até hoje, a única vez em que o STF discutiu um processo relacionado ao tema foi o de Roberta Close. Mesmo assim, a polêmica era outra: a mais famosa transexual do Brasil tentava mudar de nome. O processo nem foi debatido: partiu direto para o arquivo, em 1997 (veja memória na página ao lado). Passados 12 anos, agora é a trajetória de Nicole (nome artístico) que vai ser dissecada pelo tribunal.

A ação de Nicole chegou ao Supremo em 2006 e está nas mãos do ministro Celso de Mello, o mais antigo da Corte. ¿Os transexuais estão cada vez mais conquistando terreno no país. Agora, pela primeira vez, o Supremo vai discutir a questão da identidade sexual¿, disse o decano.

A dançarina, que mora em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, resolveu entrar na Justiça contra o governo do estado porque considerou que a cirurgia de troca de sexo estava demorando demais ¿ o que estaria pondo em risco a própria vida. No processo, alegou que estava tomando medicamentos pré-cirúrgicos por mais de quatro anos ¿ o dobro do período indicado. E que, mesmo apta a passar pelo procedimento desde 2001, continuava esperando na fila.

Nicole pediu para fazer a cirurgia imediatamente. Segundo consta na ação, alguns remédios utilizados nessa fase podem levar a doenças como icterícia, hepatite e até à falência hepática, o que pode matar. A dançarina também pediu uma indenização por danos morais. O governo do Rio recorreu ao STF depois que o Tribunal de Justiça do Rio decidiu que era ¿dever¿ do Poder Público tomar providências para a realização da cirurgia, ¿considerando o risco de vida a que se submete o agravado, com a demora na realização da intervenção cirúrgica¿, diz Celso de Mello.

Felicidade

O Correio localizou Nicole no Rio. A dançarina evitou se expor e não topou ser fotografada ou revelar o nome de batismo. Mas disse que a cirurgia foi feita em 2005. A informação não consta do andamento processual. Mesmo que constasse, não prejudicaria a discussão do caso, já que o pedido é mais amplo e abrange a indenização.

O relator lembra que já houve decisões em outros tribunais, e também no STF, obrigando governos a bancar outros tipos de cirurgia para não pôr vidas em risco. ¿Essa é uma das causas do congestionamento dos tribunais: a recusa do Poder Público em observar direitos e garantias, provocando, muitas vezes, de modo absolutamente necessário, que se recorra à Justiça.¿

Ele acrescenta: além do direito à saúde, assegurado pela Constituição, o direito à felicidade, não explícito na Carta, também vai entrar em pauta. Se Celso de Mello seguir a tendência liberal que vem adotando em outras discussões polêmicas, como o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, vai votar a favor de Nicole. ¿O Poder Judiciário precisa fazer uma opção: o interesse financeiro do Estado ou os valores mais fundamentais, que são o direito à saúde, à vida, ao respeito e à dignidade humana¿, afirmou.