Título: Longe do consenso
Autor: Couto, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 24/12/2009, Brasil, p. 8

Programa nacional apresentado pelo governo é criticado por especialistas. Eles afirmam que só um plano de intenções não basta. Lista de ressalvas vai da falta de diálogo com a sociedade a problemas estruturais nos estados

Escavações no Araguaia: Comissão Nacional da Verdade é considerada um dos pontos mais polêmicos do programa

Lançado nesta semana pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH), propagado pelo governo federal como um grande avanço, está fadado ao fracasso. As razões apontadas por especialistas ouvidos pelo Correio são as ausências de audiências públicas nas assembleias legislativas, de diálogo com a sociedade e de efetividade do tema nas escolas, além da infraestrutura precária dos estados, o que tornaria impossível aplicar todas as 520 ações previstas no documento. Um dos pontos mais polêmicos do texto, assinado por 31 ministérios, é a criação de um grupo de trabalho para propor um projeto de lei que institua a Comissão Nacional de Verdade, com o objetivo de examinar as violações sofridas durante a ditadura militar. ¿O Estado brasileiro começou a admitir a possibilidade da criação de uma comissão após o Caso Araguaia ter sido encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos¿, lembra Beatriz Affonso, representante no Brasil do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil).

A criação da comissão não é consenso nem mesmo dentro do próprio governo. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, por exemplo já se posicionou contra a criação do grupo. Durante seu discurso na cerimônia de lançamento do PNDH 3, a representante dos movimentos de direitos humanos, Deyse Benedito, cita que Jobim não quis apoiar o programa e se opôs à formação da Comissão Nacional de Verdade. ¿No Executivo, há contradições. A criação da comissão é elemento essencial para a democratização da sociedade brasileira e para reparar o que foi feito¿, reforça. Procurado pela reportagem, o ministro informou que, por enquanto, não vai se pronunciar sobre o assunto.

Fundada em 1994 para apoiar as vítimas de violações de direitos humanos no país, a Cejil encaminhou um abaixo-assinado com os princípios mínimos a serem seguidos pelo governo para que a Comissão Nacional de Verdade cumpra seu objetivo (leia quadro). ¿Embora esteja em fase embrionária, a criação do grupo, nos moldes propostos pelo governo, não apresenta nada de inédito. A possibilidade de a comissão pedir à Justiça que tome providências já pode ser feita hoje por qualquer pessoa¿, frisa Beatriz. Ela ainda alerta que o PNDH reservou apenas uma vaga na comissão para o representante da sociedade civil. ¿Os outros são todos integrantes da esfera governamental.¿ Em sua opinião, familiares das vítimas devem formar uma comissão de auxílio aos trabalhos do grupo principal. ¿Até para garantir equilíbrio de forças¿, defende.

Acesso à informação Também cético em relação ao sucesso do PNDH, o professor de direitos humanos e especialista em regulação de políticas públicas pela Universidade de Brasília (UnB) Emerson Masullo diz que uma das falhas do programa é não prever a realização de audiências públicas nas assembleias legislativas de todas as unidades da Federação para discutir as propostas a serem implementadas. Além disso, falta maior divulgação perante a sociedade e efetividade do assunto nas escolas, explica. Embora o PNDH afirme a necessidade de implementação de diretrizes e princípios da política nacional de educação nas escolas e faculdades, Masullo salienta que a disciplina de direitos humanos ainda é optativa nos cursos de direito. ¿O programa deveria obrigar essa matéria nas universidades.¿ Para ele, a partir da 4ª série do ensino fundamental, o estudante deveria receber noções básicas da Constituição Federal (direitos e garantias), relações de consumo e direito eleitoral. ¿A ideia é fantástica, mas esbarra na falta de efetividade que a própria sociedade desconhece a Declaração Universal dos Direitos Humanos¿, destaca.

Resultado das resoluções aprovadas durante a 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada em dezembro do ano passado, e de cerca de 60 conferências temáticas ocorridas durante o governo Lula, o PNDH é visto como um grande passo pelo ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi. ¿O programa apresenta as bases para a construção de uma política de Estado para assegurar esses direitos à população.¿

Apesar de reconhecer que a criação do PNDH é um avanço, Masullo diz que o governo faz propaganda política ao vincular programas sociais como o Bolsa Família e o Fome Zero a importantes conquistas na área dos direitos humanos. ¿O governo não está fazendo nenhum favor. Está escrito na Constituição Federal o direito a alimentação de todo cidadão¿, pondera.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados (OAB), seção Distrito Federal, Jomar Moreno elogia a iniciativa governamental. ¿É positiva. O governo tem que ter essa visibilidade ampla. É através de ideias genéricas que chegamos à efetividade¿, observa. Sobre a Comissão Nacional de Verdade, Moreno defende a abertura dos arquivos. ¿É uma ferida que não quer cicatrizar. Temos que dar uma resposta aos filhos e às viúvas das vítimas da ditadura. Abrir os arquivos é o primeiro passo¿, reforça.

Princípios mínimos

Antes do lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 3, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) encaminhou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, um abaixo-assinado com princípios mínimos a serem seguidos para que a Comissão Nacional de Verdade atinja seus objetivos. Confira, abaixo, um resumo dos principais pontos.

Garantia do amplo acesso aos arquivos de todos os órgãos públicos Garantia que suas funções, competências, prerrogativas, poderes, estrutura e recursos gozem de autonomia, independência e efetividade O seguimento do trabalho da comissão, assim como a implementação de suas recomendações, deve utilizar a Justiça nacional e os instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos, garantindo que, ao atingir a sua finalidade, os resultados obtidos pela Comissão de Verdade, posteriormente, possam instrumentalizar as autoridades competentes, para a realização de investigações, julgamentos e sanções dos perpetradores de crimes contra a humanidade cometidos em nome do regime ditatorial.