Título: Missão de resgate
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 28/12/2009, Mundo, p. 12

Aeronave da Força Aérea Brasileira aterrissa em Belém trazendo cinco vítimas de ataque dos quilombolas

Carros e caminhões foram queimados pelos quilombolas surinameses na cidade de Albina, durante ataque a brasileiros, na noite de quinta-feira

Omesmo avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que levou na manhã de ontem dois diplomatas ao Suriname para prestar auxílio às vítimas de um ataque sofrido na última quinta-feira trouxe cinco brasileiros de volta ao país às 21h05 de ontem (hora de Brasília). A missão do Itamaraty, formada por um assessor da Secretaria-Geral ¿ especializado em apoio humanitário ¿, e um representante da Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior, chegou a Paramaribo por volta das 15h. Logo em seguida, os embaixadores visitaram os 81 brasileiros alojados em dois pequenos hotéis da capital. O embaixador do Brasil no Suriname, José Luiz Machado e Costa, dirigiu-se à cidade de Albina, na fronteira com a Guiana Francesa, para saber mais detalhes sobre o que ocorreu na noite da véspera de Natal. Ele foi acompanhado pelo embaixador Robby Ramlakhan, número três da diplomacia do Suriname.

Em comunicado divulgado na noite de ontem, Costa reafirmou que não há registros oficiais de brasileiros mortos. ¿Não houve comprovação de mortes de brasileiros. As declarações dos nacionais ouvidos em Albina coincidiram com as dos brasileiros que se encontram em Paramaribo, no sentido de que não testemunharam nenhum assassinato de brasileiro¿, afirma a nota. O texto acrescenta que ¿são quatro os feridos com gravidade que permanecem internados em hospitais em Paramaribo¿. Costa foi recebido em Albina pelo inspetor-chefe do Distrito. O policial disse que o acusado de matar um surinamês, fato que teria precipitado o conflito, ¿ainda encontra-se foragido, provavelmente na Guiana Francesa¿. Segundo a nota, 22 surinameses suspeitos de haverem participado do ataque estão detidos, e vários nomes são investigados.

O embaixador do Brasil conversou com cinco brasileiros que se encontravam sob proteção da polícia. Segundo o Itamaraty, a consulesa brasileira na Guiana Francesa, Ana Lélia Beltrame, viajou até a cidade de Saint Laurent du Maroni ¿ onde mora grande parte das vítimas do ataque ¿, e confirmou que nove brasileiros estavam feridos do outro lado da fronteira, incluindo uma gestante que perdeu o bebê.

O relato do governo brasileiro, entretanto, difere do que é narrado pelos brasileiros que presenciaram o ataque. A garimpeira Rita Maria Pereira da Silva, 43 anos, que mora na Guiana Francesa, se emocionou ao contar ao Correio, por telefone, os momentos de terror vividos na noite da última quinta-feira. Ela e um grupo de brasileiros atravessaram o Rio Maroni para fazer compras no Suriname. Ao chegar à outra margem, foram surpreendidos por um grupo de ¿marrons¿ (surinameses quilombolas). ¿Foi tudo muito rápido. Eles começaram a espancar os brasileiros, dar bofetões e jogar pedras e garrafas. Eles puxaram minhas roupas, procurando meus pertences, e arrancaram o que eu tinha de valor¿, lembra a paraense, que vive na Guiana há sete anos, e estava com o filho de 24 anos na hora do ataque.

Segundo a garimpeira, a motivação do ataque dos marrons não foi revidar o assassinato de um deles por um brasileiro, como vem sendo divulgado pela imprensa, mas roubar. ¿Não é de hoje que isso acontece. Muitas vezes, na estrada de Albina para Paramaribo acontecem roubos, porque os brasileiros geralmente vêm com ouro e joias¿, explica. ¿Esse ataque já estava planejado, porque levaram todo o nosso ouro, nossos valores pessoais e celulares. A primeira coisa que eles fizeram, depois de atacar, foi roubar as mercadorias dos supermercados, pegando dinheiro e carregando tudo¿, narra. Roni, 24 anos, confirma a versão de Rita: ¿Eles saíram roubando tudo, batendo e esfaqueando quem estivesse pela frente. Depois jogaram vários corpos no rio, não se sabe quantos, mas foram mais de sete¿, arrisca. O padre brasileiro José Vergílio, que está prestando assistência aos brasileiros, havia afirmado que ao menos sete pessoas morreram. Sobreviventes do ataque falam em cerca de 20 desaparecidos.

Retorno O avião da FAB pousou no Aeroporto Internacional de Belém, com os cinco imigrantes brasileiros que quiseram retornar ao país após o violento ataque. Mais cedo, a ministra interina dos Negócios Estrangeiros no Suriname, Jane Aarland, afirmou ao secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, que seu governo vai tomar ¿todas as medidas¿ para garantir a segurança dos brasileiros. Os 76 imigrantes que ficaram continuam com medo de novos incidentes. ¿A situação não está boa. A nossa vontade é voltar, mas como temos dívidas no Brasil, precisamos ficar aqui para trabalhar, ganhar dinheiro e pagar o que devemos¿, disse Rita. A garimpeira afirmou ao Correio que ela e seus companheiros não sabem como farão para retornar ao território francês, já que perderam tudo o que levavam consigo na noite de Natal. ¿O meu futuro, só Deus sabe¿, desabafou.

Depoimentos

¿Por volta das 22h30 (de quinta-feira), quando atravessamos o rio e chegamos a Albina, eles já partiram para cima. Eles começaram a espancar os brasileiros, dar bofetões, jogar pedras e garrafas. Me pegaram, me jogaram dentro da canoa com o meu filho, puxaram minhas roupas procurando meus pertences, arrancaram o que eu tinha de valor. Eles fizeram com as mulheres o que quiseram, e chegaram até ao ponto de estuprar algumas, mas muitas delas não quiseram contar isso na delegacia por vergonha. Depois que eles bateram no meu filho, e me jogaram com ele dentro d¿água, a gente conseguiu fugir nadando, quase morrendo. Depois passamos a noite na lama, com o corpo molhado e um monte de insetos. Minha perna também está ferida porque me jogaram uma pedra, e não estou quase conseguindo andar direito. Foi muito mais grave do que as pessoas imaginam, e não foi um acerto de contas como estão dizendo. Foi roubo mesmo¿

Rita Maria Pereira da Silva, garimpeira, 43 anos, trabalha na Guiana Francesa

¿Eu estou todo acabado, só não me mataram mesmo porque Deus tem um plano para mim. Eles (marrons) estavam com granada, com tudo para matar os brasileiros ¿ e gritavam que queriam matar todos os brasileiros. Eles estavam em bando, e usavam armas pesadas, que nem a polícia aguentou. Foi preciso vir o Exército para resgatar a gente. Na manhã do outro dia, bem cedo, eles ainda queriam invadir o quartel, para nos pegar. Eles não respeitam nada, nem as autoridades. Tudo aconteceu muito rápido, eles saíram roubando tudo, batendo e esfaqueando quem estivesse pela frente. Depois jogaram vários corpos no rio, não se sabe quantos, mas foram mais de sete. Quando eu fui passando, eles me deram um murro, me jogaram dentro d¿água e quando eu fui subir na canoa, eles tentaram me acertar com um remo. Quando saí da água, corri para o mato, mas eles ficaram jogando granadas em cima de mim. Graças a Deus eu sobrevivi¿

Roni, garimpeiro, 24 anos, trabalha na Guiana Francesa