Título: Versões conflitantes
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 29/12/2009, Mundo, p. 17

Itamaraty reafirma que brasileiros não foram mortos no dia 24, mas testemunhas dizem que há desaparecidos

Apesar de habitantes de Albina, no Suriname, indicarem que brasileiros foram assassinados na cidade na véspera de Natal, o Itamaraty voltou ontem a negar a versão. O secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Antonio Patriota, se reuniu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para relatar a situação no país vizinho. O diplomata reiterou que não houve registro de mortes entre brasileiros, conforme nota do ministério divulgada no domingo. Patriota disse ainda que há cooperação entre os países e que a situação no Suriname ¿está mais sob controle do que parece¿. As autoridades surinamesas detiveram ontem 35 suspeitos pelo ataque aos brasileiros, inclusive homens que teriam violentado brasileiras.

Apesar das afirmações do Itamaraty, o padre José Vergílio, que vive há oito anos em Albina em contato com a comunidade brasileira, disse ao Correio, por telefone, que a situação está tensa e há muitas contradições. Ele destaca que ¿todo mundo sabe dos desaparecidos¿. ¿Existe a dificuldade de provar (a morte dos brasileiros), pois, durante a fuga, todo mundo correu para as canoas e foram para o rio. E, lá, muitos foram `abatidos¿¿, conta o sacerdote. ¿É complicado, fico com dor no coração, porque a gente está no meio da situação. Infelizmente, parece que (a informação do) Itamaraty passou por muitos crivos, muitos filtros¿, comenta Vergílio.

Garimpo

Albina é uma cidade no Suriname às margens do Rio Maroni, na fronteira com a Guiana Francesa, onde vivem 10 mil pessoas. Conta com um grupo de cerca de 300 brasileiros e chineses ¿ a maioria imigrantes ilegais, atraídos pelo garimpo do ouro. Na véspera de Natal, os estrangeiros teriam sido atacados por motivos de vingança, depois que um brasileiro esfaqueou um membro de uma comunidade quilombola (descendentes de escravos, também chamados ¿maroni¿, ou ¿morenos¿, no país).

Segundo o pedreiro Raimundo Silva, a confusão teria começado no bar do hotel de seu irmão, que atende principalmente a comunidade brasileira. Os ¿morenos¿ teriam chegado e declarado assalto ao bar. ¿Um brasileiro reagiu e deu uma facada num `moreno¿¿, afirmou o pedreiro, que disse desejar sair do Suriname. Raimundo ressaltou que conhece muitos brasileiros na cidade e sabe que está faltando gente. ¿Estão dizendo que não morreram, mas deve estar tudo dentro do rio¿, disse. Quatro brasileiros feridos estão internados em hospitais do Suriname e estão sob observação médica. Uma equipe da embaixada brasileira percorre hospitais e hotéis em busca de mais informações.

O professor holandês Hugo den Boer vive em Albina há 10 anos e também foi uma das testemunhas da violência contra os imigrantes. ¿Eu levei à polícia um pequeno grupo de brasileiras que foram violentadas, para denunciarem o crime.¿ Boer disse ao jornal NRC Handelsblad que um de seus amigos chineses teve a loja saqueada e destruída. ¿Ele nunca tinha machucado uma mosca e agora perdeu tudo. Ele foi um alvo simplesmente porque seu negócio ia bem¿, disse. O professor também acusou autoridades do governo e suas esposas de rastrearem as lojas procurando objetos de valor para saquear. ¿Aparentemente, tudo pode descambar para a anarquia em uma fração de segundos.¿ O jornal cristão Nederlands Dagblad acusou o Estado de não chegar ao leste do Suriname, onde os conflitos se concentram. ¿A autoridade pública não existe. A polícia e o exército têm pouco ou nada a dizer¿, afirmou ontem o jornal.

O número 35 Número de pessoas presas sob suspeita de terem participado do ataque a estrangeiros

Entenda o caso Tensão envolve Albina

A abundância de turistas já fez com que a cidade de Albina fosse um dia chamada de ¿Riviera surinamesa¿. No entanto, a violência atual remete aos anos 1980, consequência da guerra civil entre a junta militar de Desi Bouterse e os rebeldes do Comando da Selva, liderados por Ronny Brunswijk. Devido ao conflito armado, uma geração inteira cresceu sob o signo da violência, da delinquência e do desemprego.

A chegada de grandes empreendedores chineses e garimpeiros brasileiros que conseguiram abrir minas de ouro bem-sucedidas aumentou a tensão em Albina. Com a alta no preço do ouro, as minas brasileiras no Suriname têm sido alvos de ladrões da comunidade quilombola, formada por descendentes de escravos.

O atual presidente, Ronald Venetiaan, pediu a Brunswijk para restaurar a ordem na região oriental do país. Para o mandatário, Brunswijk deveria controlar seu povo, já que lidera o maior partido quilombola no Congresso do Suriname. Para a imprensa do país, o líder rebelde é um mau exemplo, acusado de envolvimento em tiroteios, abusos físicos, assalto a bancos e tráfico de drogas. Para a população local, porém, ele é uma espécie de Robin Hood, que ¿rouba¿ para os pobres. ¿Enquanto pessoas como Brunswijk forem consideradas modelos a serem seguidos e idolatrados pela população, lutamos uma batalha que não podemos vencer¿, avalia o professor holandês Hugo den Boer.