Título: Manual para sepultar comissões de inquérito
Autor: Lima, Daniela; Foreque, Flávia
Fonte: Correio Braziliense, 31/12/2009, Política, p. 2

CONGRESSO

Comandados pelo Planalto, parlamentares da base aliada aprimoram práticas para garantir controle das investigações das CPIs. Oposição, sem força, tenta mudar regras legislativas

Álvaro Dias: ¿O governo aprendeu a dominar, amarrar as investigações e, com isso, impedir que o Congresso exerça função fundamental, que é a fiscalização¿

Durante o ano de 2009, deputados e senadores deram vastas demonstrações de que o Código de Ética e Decoro Parlamentar está em desuso no Congresso Nacional. As revelações de abusos no uso de passagens aéreas, desvios nos pagamentos feitos com a verba indenizatória e um sem-número de nomeações de parentes e apadrinhados políticos por debaixo dos panos do Senado são apenas alguns exemplos disso. Mas, ao mesmo tempo, um outro manual ganhou força e notoriedade nos corredores das duas casas que compõem o Legislativo federal: o de sepultamento das comissões parlamentares de inquérito (CPIs). Sob a batuta do governo, parlamentares da base aliada aprimoraram as práticas que garantem o domínio e a consequente contenção de danos das investigações. E, diante desse enredo, que favorece o Executivo(1) e amarra o poder de fiscalização do Congresso, a oposição prega mudanças nas regras que definem a formação e o funcionamento das CPIs.

No Senado, a alardeada CPI da Petrobras, instalada para apurar supostas irregularidades na gestão da estatal, terminou melancolicamente. A oposição mirou na empresa na tentativa de acertar o palanque da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, candidata do presidente Lula à sucessão em 2010. Fez o requerimento de abertura da CPI, pressionou pela instalação. Terminou abandonando os trabalhos antes mesmo do encerramento oficial das apurações.

Mas eles não tinham mesmo muito o que fazer. Afinal, após adiar por meses a instalação da CPI, a base aliada orquestrou a composição dos membros da investigação. A relatoria da CPI ficou nas mãos do líder do governo, senador Romero Jucá (PMDB-RR). A presidência, com o senador João Pedro (PT-AM). A oposição abandonou o barco, alegando que, na verdade, as apurações não passavam de uma farsa.

A cena se repetiu em outras investigações. A também aclamada CPMI do MST, instalada para investigar o repasse de dinheiro público ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, ainda não começou a trabalhar. Nasceu em outubro, depois que integrantes do movimento invadiram uma fazenda em São Paulo e destruíram pés de laranja. Fechou o ano sem dar início efetivo aos trabalhos. ¿2009 foi o ano em que as CPIs fracassaram. O governo aprendeu a dominar, amarrar as investigações e, com isso, impedir que o congresso exerça função fundamental, que é a fiscalização¿, avaliou o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), que propôs a criação da CPI da Petrobras.

Para a senadora tucana Lúcia Vânia (GO), que participou da CPI criada em 2008 para investigar a destinação de recursos para organizações não governamentais, é preciso reformular as regras que norteiam essas investigações. ¿Nós não temos instrumentos para concluir essas apurações. Não somos maioria, o que dificulta o trabalho. É preciso mudar o regulamento que estipula o funcionamento das CPIs¿, afirmou. A CPI das ONGs não foi encerrada. Os trabalhos foram abandonados ao longo deste ano, e devem ser finalizados em 2010.

1 - Otimismo O deputado Eduardo da Fonte (PP-PE), filiado a partido aliado do governo, sai em defesa das investigações e cita como exemplo os resultados da comissão que presidiu este ano, a CPI das Tarifas de Energia. Para ele, a conquista de apoio popular é fundamental para as apurações. ¿Fizemos audiências públicas em sete estados do país. Os parlamentares se comprometeram com suas bases. A pressão foi muito importante para que eles não perdessem o estímulo¿, resumiu.

Modelo atual questionado Edilson Rodrigues/CB/D.A Press - 8/4/09

Nós não temos instrumentos para concluir essas purações¿ Lúcia Vânia,senadora do PSDB de Goiás

Mesmo especialistas divergem sobre a eficiência do modelo das comissões parlamentares de inquérito do Congresso. Apesar dos resultados limitados das CPIs, o cientista político João Paulo Peixoto defende o atual modelo. Já para o professor de Ética da Unicamp Roberto Romano, o boicote da base aliada às investigações representa uma renúncia à função fiscalizadora do parlamento.

¿Quando os governistas alegam que têm que apoiar o governo e por isso não podem investigar, eles estão abrindo mão do poder Legislativo¿, afirma o filósofo. Romano argumenta, no entanto, que a criação das comissões não pode ser vista como negativa, pois a simples formação de um grupo já denota o funcionamento do parlamento.

Já Peixoto acredita que as CPIs são fundamentais para manter a legitimidade do poder Legislativo. ¿A CPI é um instrumento fundamental para uma das funções do Legislativo, que é fiscalizar o Executivo. Ele não tem a prerrogativa de condenar, punir. Isso cabe ao Judiciário¿, afirma João Paulo, que é professor da Universidade de Brasília (UnB).

Fato é que, em 2009, o Congresso escolheu não investigar. Mas não foi por falta de CPIs. Só este ano seis comissões de inquérito foram instaladas ¿ quatro na Câmara e duas no Senado. Na opinião dos próprios parlamentares, o excesso de escândalos envolvendo as duas casas do Legislativo contribuiu para a escassez de resultados. ¿Eles retiraram energia e autoridade do Congresso, e isso tem um peso¿, reconheceu o senador Álvaro Dias (PSDB-PR).

Mesmo diante do naufrágio das investigações mais aclamadas pela oposição, as CPIs acumulam êxitos pontuais. A CPI das Tarifas de Energia, da Câmara, constatou que remuneração ilegal, feita pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) às concessionárias, provocou o pagamento de ¿valores indevidos¿ pelos consumidores. O relatório final da comissão pede ao Ministério Público Federal uma apuração sobre suposto ato de prevaricação por parte de integrantes da Aneel e solicita ao órgão a criação de um mecanismo para compensar o consumidor pelos valores indevidos. ¿Se não for cumprido o prazo (de 60 dias), vamos pedir a criação de uma CPI mista para apurar porque se opõem a devolver o dinheiro aos consumidores¿, ameaça o deputado Eduardo da Fonte (PP-PE).

No Senado, a CPI da Pedofilia, que ainda está em andamento, também tem o que comemorar. Foi com a pressão dos parlamentares que o Ministério Público Federal (MPF) conseguiu celebrar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para combater a exploração sexual de menores na internet.

Réquiem legislativo

Veja como o governo consegue enterrar as CPIs:

Demora na instalação As investigações são criadas, mas demoram a sair do papel. O governo conseguiu prorrogar por meses a instalação da CPI da Petrobras, por exemplo. A apuração só vingou quando o PMDB resolveu usar a comissão para pressionar o PT a apoiar publicamente o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), no meio da crise deflagrada pela descoberta dos atos secretos.

Composição amigável Para delimitar o poder de fogo das CPIs, a base do governo aposta na composição do colegiado. Cargos importantes sempre são ocupados por parlamentares que gozam da confiança do Executivo. Na investigação criada para apurar o repasse de recursos para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo, o deputado Jilmar Tatto (PT-SP) ficou com a relatoria, e o senador Almeida Lima (PMDB-SE), com a presidência.

Investigação a perder de vista Em fevereiro de 2008 os membros da CPI dos Grampos, instalada na Câmara dos Deputados, elencaram os principais focos da apuração. Iriam se debruçar sobre o excesso de autorizações de escutas concedidas pela Justiça, a atuação de detetives particulares e das operadoras de telefonia. Terminou, em 2009, interrogando o banqueiro Daniel Dantas e o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz, protagonistas da Operação Satiagraha. Moral da história: sem foco nas investigações, fica difícil alcançar resultados concretos e relevantes.