Título: E assim a casa cai...
Autor: Lima, Daniela
Fonte: Correio Braziliense, 10/01/2010, Brasil, p. 8

Especialistas explicam que o país tem instrumentos para evitar tragédias como a de Angra, mas falta vontade política para impor as leis ambientais e o ordenamento territorial. Ministro das Cidades admite peso eleitoral das decisões

Na certeza de que o bônus eleitoral chegará antes dos desastres, governadores, prefeitos e autoridades se revezam no poder há décadas ignorando a legislação ambiental e fazendo vista grossa aos assentamentos irregulares. O resultado, na avaliação de especialistas no tema consultados pelo Correio, são tragédias como a que o país assistiu na madrugada do último 31 de dezembro, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Eles argumentam que não faltam instrumentos públicos para evitar que vidas se percam em deslizamentos ou enchentes, o que falta é vontade política de fazer valer as leis ambientais e de ordenamento territorial em vigor no Brasil.

¿Se o poder público não faz, a natureza age uma hora, e aí o desfecho é o mais desolador¿, resume o diretor do Departamento de Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João de Deus. Na avaliação do diretor, ¿há um problema de desobediência civil generalizado¿ que se apoia na omissão do estado em cumprir as normas. ¿Retirar famílias de áreas de risco custa muitos votos, mas é uma decisão que precisa ser tomada. O problema é que só se questiona em um momento como esse¿, completou.

A teoria do técnico é endossada pelo político que passou a última semana sobrevoando as áreas devastadas no estado do Rio. O ministro das Cidades, Márcio Fortes, admite o peso eleitoral que a determinação de desocupação de áreas irregulares tem sobre os políticos, mas defende um posicionamento mais austero. ¿É preciso retirar essas pessoas sim, mesmo que isso custe votos. Não é possível que os prefeitos deixem uma área ser ocupada, sendo que aquilo pode ser definitivo para a vida ou para a morte em algum momento¿, afirmou.

Os especialistas sabem que as perdas são o desfecho triste de uma trama complicada. ¿As cidades não podem mais mitigar as mudanças climáticas, que estão acontecendo cada vez mais rápido. É preciso se adaptar a elas. Os governantes precisam saber que todos os anos vai chover e que, se nada for feito, teremos mortes a cada ano¿, ressaltou a geóloga da Universidade de Brasília (UnB) Mônica Veríssimo, presidente da Fundação Sustentabilidade e Desenvolvimento.

Segundo o Estatuto das Cidades, criado em 2001, todos os municípios com mais de 20 mil habitantes são obrigados a desenvolver planos de ordenamento territorial. Esses projetos são utilizados para organizar a ocupação das cidades. São eles que definem onde é possível expandir a ocupação urbana, quais lugares não podem ser habitados por terem recursos naturais fundamentais, quais devem ser evitados por representarem um risco à vida. Para os municípios com menos habitantes, o desenvolvimento da peça é optativo.

Preocupado com a qualidade dos planos de ordenamento territorial do país, o Ministério das Cidades firmou, em 2006, um convênio com o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea). Desde então, técnicos do Confea analisam os planos desenvolvidos no país. Além da ausência em muitos municípios ¿ os números ainda não estão fechados ¿, eles constataram a falta de qualidade dos projetos elaborados. ¿Muitos municípios pequenos não contam sequer com corpo técnico para desenvolver esses projetos¿, resumiu o conselheiro federal do Confea, José Roberto Geraldine Júnior.

A falta de planejamento não incide apenas sobre os planos de ordenamento territorial. Projetos como os de drenagem de águas, por exemplo, são vítimas do mesmo mal. Mesmo com uma enxurrada de recursos disponíveis, as cidades brasileiras não conseguem desenvolver projetos eficazes. ¿Nós não fazemos projetos, nem obras. Nós priorizamos recursos. Isso deve estar na agenda de todas as cidades¿, finalizou o ministro Márcio Fortes.

Diário da incerteza

Repórter do Correio que estava em Angra dos Reis relata o drama de quem não conseguia sair da cidade e conta como a região não está preparada para situações de catástrofe

Tiago Faria

As ruas estreitas de Angra dos Reis exibem sinais de perigo a cada curva. Nos dias seguintes à tragédia do réveillon, que deixou 52 mortos num dos balneários mais concorridos do Rio, aqueles que tentaram sair do município se viram obrigados a desviar de uma série de pequenos desastres: árvores derrubadas, fios da rede elétrica abandonados no asfalto, postes envergados por deslizamentos de terra, vias interditadas e lombadas de barro formado pelo acúmulo de terra das encostas. Somados, os obstáculos provocavam nos motoristas a impressão de que não havia como eleger zonas de risco numa cidade que parecia ¿ toda ela ¿ à beira de um novo colapso.

O sentimento de apreensão e desamparo, compartilhado entre visitantes e moradores, varou os primeiros dias de 2010. Na manhã ensolarada de domingo, 3 de janeiro, ainda eram poucos os que se arriscavam a mergulhar nas águas do continente. Desde a madrugada do dia 1º, quando famílias foram soterradas no Morro da Carioca (na área central da cidade) e em Ilha Grande, as praias ganharam um colorido turvo, em tons de marrom. Ainda que sob um céu sem nuvens, o clima tenso exigia pressa dos que pretendiam seguir pela rodovia Rio-Santos. Para os que ficavam, não havia muitas providências a tomar: a ameaça pairava sobre quase todas as residências da região, das construções que se equilibram sobre os morros às mansões à beira-mar.

Nessa chuvosa semana do ano-novo, eu estava entre os tantos turistas que partiram de Brasília para passar o feriado no litoral fluminense. Com um grupo de cinco pessoas, hospedei-me na Praia do Retiro, a 13km do centro. À semelhança de muitas das casas da Estrada do Contorno, aquela foi erguida entre o pé do morro e a areia do mar. Uma paisagem de paradoxo: estávamos de frente para o paraíso, mas à sombra de uma vegetação robusta, formada por árvores tão altas quanto, em caso de tempestade, perigosas. Na segunda-feira, dia 28 de dezembro, as perspectivas para o feriado não pareciam as melhores: enfrentamos quase 100km de engarrafamento e chuva na Rio-Santos, no sentido São Paulo-Rio de Janeiro. No dia seguinte, para nosso alívio, o sol espantou as nuvens mais carregadas.

Fazíamos planos para a noite de réveillon quando, na quarta-feira, uma chuva fina e gelada começou a cair sobre a praia. Não parecia, até então, motivo para alarde. Mas, com o passar das horas, começamos a nos impressionar com a duração do aguaceiro. A água encharcava o terreno insistentemente à tarde e durante a madrugada. Os sinais estavam todos lá: o gramado, as encostas e as pistas ensopadas. Ainda assim, nenhum alerta da Defesa Civil.

À luz de velas Por volta das 19h da noite de réveillon, já decididos a passar a noite em casa, uma surpresa: o abastecimento de energia elétrica na Estrada do Contorno foi cortado. As notícias, multiplicadas pela boataria, eram de que todos os bairros mais próximos também estariam no breu. Depois de uma ceia iluminada por lampião e velas, assistimos a um espetáculo sombrio: a tradicional queima de fogos de artifício nas ilhas foi ofuscada por nuvens densas e abafada pelos ruídos da chuva, cada vez mais intensa. De Brasília, recebemos informações por telefone de que, em Angra, o estado era de emergência. Não havia como sair de casa para festejar com os vizinhos.

O relógio ainda não marcava 2h quando ouvi um baque abafado no jardim da casa, acompanhado de um sopro gordo de vento na janela. No morro próximo à casa, uma árvore se despregou do solo e, entortada sobre a fiação elétrica, resvalou no nosso quintal. Os galhos espinhosos, que por poucos metros não se chocaram contra as paredes, afundaram a cerca viva e bloquearam o portão.

Telefonamos para a Defesa Civil, mas, ainda que prontamente atendidos, não recebemos a visita dos técnicos. Não naquela noite, nem na seguinte. Passamos o primeiro dia de 2010 ilhados, sem energia elétrica, cientes de que havia pessoas em condições muito mais complicadas que a nossa.

A Defesa Civil demorou quase dois dias para liberar o trecho da Estrada do Contorno interditado pela árvore que desabou sobre a casa onde estávamos hospedados. Na tarde de sábado, uma pequena equipe, com velhas serras a diesel e um trator, cortou os galhos e limpou a área. Um dos técnicos explicou a gravidade da situação: era insuficiente o número de profissionais da área, que acumulavam funções e estavam responsáveis tanto por resgatar corpos das vítimas de deslizamentos quanto por desbloquear as pistas. Na manhã de sábado, fizeram dois partos em lanchas.

Sair de casa, pelo menos, deixou de ser um drama. Na manhã de domingo, já com malas arrumadas, recebemos a notícia de que a Rio-Santos havia sido fechada. Ainda sem luz, resolvemos arriscar a ¿aventura¿ de sair para a rua. No caminho, o cenário se mostrava mais desolador do que imaginávamos. Entre os habitantes da região, a tragédia reverberou como uma confirmação de que Angra não está (nunca esteve?) preparada para os efeitos da chuva e, mais perturbador do que isso, não oferece alternativas verdadeiramente seguras a quem tenta se proteger de catástrofes como as da madrugada do dia 1º. É rezar para não chover. E, ao deus-dará, temer pelo pior.