Título: Marco regulatório do petróleo caminha para formato híbrido
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/09/2008, Opinião, p. A10

Os debates sobre o novo marco regulatório do petróleo atualmente em fase de estudos no governo vêm sendo marcados por um viés excessivamente normativo. A maior parte dos especialistas no setor - normalmente a partir de um ponto de vista puramente econômico - tem baseado os seus diagnósticos e projeções naquilo que eles consideram que o governo deveria fazer com as descobertas na camada pré-sal. A dimensão política não tem recebido a mesma ênfase, de sorte que há poucas análises procurando apontar o que deve efetivamente acontecer com a legislação do petróleo.

Mas o fato é que a decisão final será essencialmente uma decisão política do atual governo, ainda que ela certamente também vá levar em conta os aspectos econômicos da questão. Aliás, não poderia ser de outra maneira.

Nos regimes democráticos, as decisões técnicas sobre regulação necessariamente se subordinam às preferências (políticas) dos políticos que chegaram ao governo e ao Congresso eleitos pelo voto popular.

O Palácio do Planalto constituiu uma comissão interministerial a quem caberá sistematizar as possíveis mudanças do marco regulatório no contexto da iminente transformação do Brasil em um grande produtor e exportador do petróleo. O prazo para que esse colegiado apresente as suas recomendações ao governo acaba de ser prorrogado para o final de setembro (e ainda poderá sofrer novos adiamentos). Mas a palavra final será dada pelo presidente Lula em pessoa. Como se vê, todo o processo decisório está nas mãos de políticos (que reagem a incentivos eleitorais), e não de técnicos.

Nesse sentido, não é surpreendente que o "modelo norueguês" de exploração do petróleo venha sendo apontado pela imprensa como a principal alternativa de marco regulatório cogitada pela comissão interministerial.

De fato, em termos políticos, há muito mais semelhanças entre o Brasil e a Noruega do que com a maioria dos demais grandes produtores e exportadores de petróleo - que são países governados por regimes autoritários ou francamente ditatoriais. O precedente norueguês é extremamente importante para estimar o que pode acontecer no caso brasileiro, pois se trata provavelmente do único outro caso, nas últimas décadas, de um país democrático que realizou grandes descobertas de petróleo. Além disso, ambos os países têm uma tradição de serem governados por coalizões partidárias de orientação social-democrática.

Seja como for, nesse momento é bem mais fácil apontar o que não vai acontecer do que antecipar em detalhes as mudanças legais que serão implementadas. Os temores sobre rompimento de contratos já em vigor e sobre desapropriações de empresas e/ou reservas soam claramente exagerados. Seja qual for a decisão política sobre o petróleo que vier a ser implementada pelo governo Lula, ela certamente não será hostil ao setor privado.

Em termos práticos, parece razoável partir de duas premissas: 1) alguma mudança na legislação será necessariamente proposta ao Congresso; e 2) uma maior participação do governo na renda petroleira será inevitável.

Ambas as premissas são intuitivas. Num regime democrático, mudanças legais submetidas ao Congresso geram mais segurança jurídica do que as implementadas através de decisão arbitrária (por decreto) dos governos.

No segundo caso, a descoberta de reservas petrolíferas, muito mais abundantes do que as conhecidas até então, inevitavelmente cria um poderoso incentivo para o aumento da parcela da apropriação governamental (seja qual for o marco regulatório adotado).

A evolução dos debates até o momento sugere que as mudanças a serem propostas pelo governo seguramente envolverão a previsão dos contratos de partilha na legislação do setor de petróleo, ao lado do regime de concessões atualmente existente. Nesse sentido, o marco regulatório brasileiro deve caminhar para um formato híbrido, com a coexistência de dois modelos contratuais.

Portanto, o cenário mais provável é que os contratos baseados na partilha da produção entre o governo e as empresas passem a ser permitidos (eventualmente em caráter não-obrigatório) apenas para a exploração das jazidas da camada pré-sal que ainda não foram concedidas à iniciativa privada. Os contratos de concessão continuariam sendo a regra para a exploração das jazidas tradicionais (mas também poderiam ser usados na camada do pré-sal).

O novo marco regulatório provavelmente envolverá a criação de uma nova empresa estatal (não-operacional), prioritariamente destinada a gerir os contratos de partilha entre o governo e as empresas que efetivamente explorarão as reservas do pré-sal. Eventualmente, essa nova empresa poderá organizar-se apenas como um escritório de administração do estoque de reservas de petróleo, tal como vem sendo recentemente especulado pela imprensa.

Os maiores problemas políticos que o governo deverá vir a ter para aprovar o novo marco regulatório do petróleo no Congresso estão relacionados à divisão dessa nova fonte de arrecadação governamental entre, por um lado, a União e, por outro lado, os Estados e os municípios. É fato que dificilmente haverá espaço político para que a atual legislação sobre royalties e participações especiais deixe de ser utilizada sob o antigo regime de concessões. Mas também é verdade que ela dificilmente será mantida como está sob o novo regime de partilha.

Em outras palavras, o marco regulatório do petróleo tem tudo para continuar sendo não apenas a "menina dos olhos" do governo Lula, como também passar a dominar a agenda legislativa a partir do momento em que o projeto for efetivamente enviado ao Congresso, o que deve acontecer entre o final de 2008 e o início de 2009. Isso para não falar no potencial que tem esse tema de dominar também a sucessão presidencial de 2010.

Rogério Schmitt é doutor em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Foi professor de Ciência Política na USP, na PUC-SP e na FESP-SP. Atualmente é cientista político da Tendências Consultoria Integrada.