Título: Governo americano assume controle de firmas hipotecárias
Autor: Hagerty, James R.; Simon, Ruth
Fonte: Valor Econômico, 08/09/2008, Empresas, p. B9

Cada vez mais preocupado com uma crise imobiliária que ameaça arrastar consigo toda a economia, o governo dos Estados Unidos está assumindo a atividade de assegurar que haja recursos disponíveis para o crédito imobiliário.

O Departamento do Tesouro dos EUA anunciou ontem um plano que fornece até US$ 200 milhões em novo capital e novas linhas de crédito para as empresas que são as maiores fontes de recursos para o financiamento imobiliário no país, a Fannie Mae e a Freddie Mac. O plano também põe as duas gigantes hipotecárias sob controle administrativo da entidade do governo encarregada de sua fiscalização, a Agência Federal de Financiamento Imobiliário, ou FHFA. O secretário do Tesouro, Henry Paulson, disse que as medidas vão aumentar a disponibilidade de crédito para os compradores de imóveis residenciais.

O Tesouro também planeja comprar uma quantia não especificada de títulos lastreados por hipotecas emitidos pela Fannie e pela Freddie, numa tentativa de baixar os custos de captação para os mutuários. Apesar dos grandes cortes de juros do Federal Reserve, o banco central, o custo de uma hipoteca de 30 anos com juros fixos, o padrão no país, continuou bem acima dos 6% na maior parte dos últimos 12 meses.

As medidas devem provocar uma baixa nas taxas de juros para pessoas físicas e ajudar a prevenir a deterioração de uma crise imobiliária que já é a pior desde a Grande Depressão dos anos 30. Pelo menos no curto prazo, as medidas também devem deixar o governo mais enfronhado na indústria de financiamento imobiliário, deixando os contribuintes expostos a perdas relacionadas à inadimplência que podem somar muitos bilhões de dólares. No longo prazo, Paulson pretende reduzir drasticamente a quantidade de hipotecas e títulos relacionados na carteira das duas empresas, mas observou que vai caber ao Congresso e ao futuro governo decidir qual deve ser o novo formato da Fannie e da Freddie.

James Lockhart, diretor da FHFA, disse que a agência assumiu o controle administrativo das empresas porque a capacidade delas de arcar com grandes prejuízos estava "em dúvida", devido à pequena reserva de capital de que dispunham e da incapacidade de captar mais recursos de fontes privadas. A intervenção vai durar indefinidamente, enquanto a agência tenta restaurar a saúde financeira às empresas.

Lockhart nomeou um novo diretor-presidente para cada empresa, mas disse esperar manter a maioria dos outros empregados. Na Fannie, Herb Allison, que atuou nos últimos oito anos como presidente do conselho da firma de investimento TIAA-CREF, sucede a Daniel Mudd. O diretor-presidente da Freddie, Richard Syron, foi substituído por David Moffett, que era vice-presidente do conselho e diretor financeiro do banco US Bancorp.

Todo o lobby das empresas, que eram conhecidas há muito pela capacidade de influenciar o Congresso, "será paralisado imediatamente", disse Lockhart.

A FHFA vai eliminar dividendos para ações ordinárias e preferenciais, poupando um total de US$ 2 bilhões por ano nas duas companhias hipotecárias.

Para assegurar que as empresas não fiquem sem capital, o Tesouro concordou em adquirir US$ 1 bilhão de ações preferenciais de cada empresa imediatamente. Os papéis têm um rendimento anual em dividendos de 10% e garantias que dão ao Tesouro o direito de adquirir 79,9% das ações ordinárias das empresas "a um valor nominal". Além disso, o Tesouro estará pronto a adquirir até US$ 100 bilhões em ações preferenciais de cada empresa, embora tenha informado que não espera que elas precisem de tanto capital.

O Tesouro também anunciou um arranjo pelo qual estará pronto a fazer empréstimos de curto prazo à Fannie, à Freddie e aos 12 bancos federais de crédito imobiliário, cooperativas de capital privado que foram criadas pelo Congresso para ajudar os bancos a financiar o mercado imobiliário. Os empréstimos serão lastreados por títulos hipotecários ou outras garantias aprovadas e terão juro de 0,5 ponto porcentual acima da taxa do interbancário de Londres - a Libor, uma medida do que os bancos cobram entre si para empréstimos de curto prazo. Em condições normais, a Fannie e a Freddie conseguem captar por menos que a Libor, mas esses empréstimos do Tesouro seriam uma garantia.

Paulson indica que quer refazer o sistema de financiamento imobiliário dos EUA no longo prazo, descartando o "falho modelo de negócios" de empresas patrocinadas pelo governo como Fannie e Freddie. Esse modelo produziu conflitos entre o desejo das empresas de obter o máximo de lucro para seus acionistas e a missão pública de sustentar o mercado imobiliário, que persuadiu os investidores de que o governo teria de resgatá-las numa crise.

O plano limita o tamanho das carteiras hipotecárias de cada empresa a US$ 850 bilhões no fim de 2009. Depois disso, o Tesouro pretende que as carteiras encolham cerca de 10% por ano até que fiquem em torno de US$ 250 bilhões em cada companhia. Mas isso é tema para decisões que podem ser tomadas pelo Congresso e futuros governos.

O governo teve de intervir no mercado hipotecário porque, por ora, "os mercados privados simplesmente não estão dispostos a colocar o capital" para créditos imobiliários a custos com que os americanos possam arcar, diz Susan Wachter, uma professora de finanças e mercado imobiliário da Faculdade Wharton, da Universidade da Pensilvânia. Sem o apoio do governo para o mercado hipotecário, os preços das casas cairiam muito mais, expondo o país como um todo a uma pressão econômica bem maior, diz Wachter.

O presidente do Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados, Barney Frank (deputado do Partido Democrata, de oposição, de Massachusetts), disse ao Wall Street Journal que os efeitos de curto prazo da intervenção serão de "fortalecer a missão pública do que elas fazem" para dar um impulso ao mercado imobiliário. Frank disse que o tamanho, o escopo e a missão finais das empresas serão algo que não será definido por pelo menos seis ou doze meses, quando o próximo Congresso e a próxima Casa Branca estiverem no controle. Ele disse que as autoridades vão analisar atentamente o futuro das empresas e seus conflitantes objetivos público e privado no ano que vem, como parte de uma enorme reforma das regras financeiras.

A Fannie e a Freddie ficaram em apuros basicamente porque resolveram adotar tipos de empréstimos mais arriscados justamente quando o mercado imobiliário estava começando a soçobrar, em 2006 e 2007, num esforço para reconquistar uma fatia maior do mercado hipotecário que havia sido tomada por rivais de Wall Street. Quando esses empréstimos começaram a fazer água, as empresas iniciaram o registro de grandes prejuízos, no segundo semestre do ano passado. Depois, no fim do ano passado, quando os investidores ainda estavam bem otimistas com as perspectivas delas, elas não conseguiram obter capital suficiente para atravessar a turbulência atual. Juntas, elas registraram prejuízos que totalizam cerca de US$ 14 bilhões nos últimos quatro trimestres, reduzindo bastante seus capitais já exauridos, e a maioria dos analistas prevê que elas continuem a anunciar prejuízos consideráveis por pelo menos outros dois ou três anos, à medida que aumentem os custos de confiscos de imóveis.

Com o plano, o governo americano vai garantir diretamente a grande maioria dos financiamentos imobiliários feitos nos EUA. A Fannie e a Freddie já detêm ou garantem cerca de US$ 5,3 trilhões em créditos imobiliários, ou quase metade de todos os existentes. Nos últimos meses, elas garantiram mais de 70% das novas hipotecas, enquanto a Administração Federal Imobiliária (FHA, uma agência do governo) garantiu a maior parte do restante, segundo a publicação setorial "Inside Mortgage Finance".

A maior parte dos empréstimos imobiliários nos EUA é agrupada em forma de títulos e vendida a investidores. A Fannie, a Freddie e a FHA dominaram esse mercado desde meados de 2007, quando os investidores perderam a fé em títulos hipotecários, a não ser os garantidos por entidades ligadas ao governo. "Quando há pânico, todo mundo quer uma garantia do governo", diz Alex Pollock, um membro residente do Instituto da Empresa Americana, um centro de estudos de Washington.

Os problemas de crédito da Fannie e da Freddie são em grande parte um reflexo da fraqueza geral do mercado imobiliário. Das hipotecas de casas para até quatro famílias, 9,2% estavam com pelo menos um mês de atraso ou em processo de execução judicial no segundo trimestre, segundo o mais recente levantamento da Associação de Banqueiros de Hipotecas. É a maior porcentagem nos 39 anos em que a associação faz o levantamento.

"Não se engane, qualquer um no negócio hipotecário vai ver prejuízos muito maiores do que achava que teria um ano atrás porque tivemos o pior mercado imobiliário e os maiores declínios dos preços de casas que qualquer um já viu", diz Thomas Lawler, um economista especializado no setor imobiliário de Leesburg, Virgínia, que antes trabalhava para a Fannie.

Mas ambas as empresas pioraram as coisas ao relaxar seus critérios e aceitar tipos mais arriscados de financiamento. As perdas com crédito da Fannie e da Freddie foram motivadas principalmente por empréstimos feitos em 2006 e 2007, quando os critérios para concessão eram os mais baixos; por hipotecas feitas para tomadores que não se encaixavam em seus padrões tradicionais de empréstimos; e pela alta exposição a créditos em áreas como Califórnia e Flórida, onde os valores das casas caíram mais acentuadamente. Empréstimos feitos em 2006 e 2007 correspondem a 65% dos prejuízos com crédito da Freddie Mac no segundo trimestre e quase 60% das perdas na Fannie Mae, segundo estimativas das empresas.

"Negócios que eles achavam serem prime (de menor risco) acabaram não sendo prime por causa da documentação limitada de renda e dos preços em declínio das casas", diz Guy Cecala, editor da "Inside Mortgage Finance".

Tanto a Fannie Mae quanto a Freddie Mac exigem seguro para hipoteca quando um mutuário pega financiamento para mais de 80% do valor de uma casa. Mas os preços caíram tanto em algumas partes dos EUA que as empresas estão tendo prejuízos mesmo quando financiaram 80% ou menos do valor de uma casa.

(Colaboraram Damian Paletta e Aparajita Saha-Bubna)