Título: Sempre imprevisível
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 12/01/2010, Mundo, p. 16

Desvalorização na Venezuela pode ter impacto no Mercosul

A decisão do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, de desvalorizar a moeda local e estabelecer um sistema duplo de câmbio pode ter efeito negativo não só para os quase 30 milhões de venezuelanos, que verão seu poder de compra diminuir para produtos importados, mas também para países da região e o próprio Mercosul, que está a um passo de aprovar o ingresso do país. Apesar de a desvalorização do bolívar ser vista por muitos como uma medida necessária, não há dúvidas de que ela foi feita da pior forma possível: abruptamente. Ontem, após ameaças de intervenção militar contra os ¿especuladores¿, o governo fechou por 24 horas um hipermercado da capital, pertencente ao grupo franco-colombiano Exito, por ¿irregularidades¿ nos preços dos produtos.

No Brasil, a oposição manifesta preocupações com o impacto da brusca desvalorização do bolívar, que era mantido a 2,15 desde 2005, sobre o Mercosul e as exportações brasileiras para o país ¿ que ultrapassaram os US$ 5 bilhões em 2008. ¿Vejo com total preocupação essas ações do presidente Chávez. Elas confirmam que estávamos certos quando dissemos que não era o momento de aprovar a entrada da Venezuela no Mercosul. Isso vai dificultar as transações no bloco¿, disse ao Correio o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que preside a Comissão de Relações Exteriores. ¿Estamos iniciando transações em moeda direta com a Argentina e o Uruguai. Como será possível fazer isso com um câmbio artificial?¿, questiona.

Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Eduardo Viola, o impacto será ¿muito negativo¿ com a entrada da Venezuela no Mercosul, especialmente nas condições atuais. ¿O Mercosul já está numa estagnação profunda, por causa das diferenças macroeconômicas entre Brasil e Argentina. Imagine como ficará com a entrada de uma economia cada vez mais centralizada e imprevisível¿, observa. Segundo ele, a imprevisibilidade causará uma insegurança nociva a um bloco que negocia acordos de livre comércio com sócios como a União Europeia.

O senador Pedro Simon (PMDB-RS), que votou a favor do ingresso da Venezuela no bloco, até admite que a desvalorização pode criar ¿um problema¿, mas não ¿um constrangimento¿. ¿Não vai ter um impacto muito grande¿, opina. ¿O nosso saldo comercial com a Venezuela é de US$ 5 bilhões, e são coisas que eles precisam comprar. Se não comprarem do Brasil ou de outro país, quem vai sofrer é o povo da Venezuela, porque eles não produzem isso lá¿, avalia. O tucano Azeredo discorda: ¿As importações ficarão mais caras para os venezuelanos, o tão decantado superavit brasileiro na balança comercial com a Venezuela certamente cairá¿. Desde que Chávez assumiu o poder, em 1999, o comércio bilateral quase quadruplicou ¿ sendo que 90% corresponde a exportações brasileiras, em especial carnes, açúcar e autopeças.

Mal necessário O diretor de Relações Internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Roberto Giannetti da Fonseca, sabe que a decisão do presidente venezuelano terá um ¿impacto inflacionário grande¿, mas acredita que ¿não havia outra solução¿. ¿A Venezuela vinha vivendo uma situação artificial de câmbio havia muitos anos. Isso tornou os produtos importados muito baratos no mercado venezuelano, e a produção nacional ficou inviável¿, ressalta. ¿O problema de manter o câmbio fixo durante muito tempo e depois valorizar o dólar em 100% é que os insumos e produtos que estavam represados havia anos dobraram de preço da noite para o dia¿, completa.

A nova taxa cambial entrou em vigor ontem, e já se sabe que não haverá como segurar os preços de produtos que tiverem qualquer parte importada. Chávez, no entanto, garantiu que manterá rédeas curtas sobre os empresários. Ontem, a Guarda Nacional fechou um hipermercado. O Ministro do Comércio, Eduardo Saman, disse que começou um enorme processo de controle e auditoria em vários estabelecimentos comerciais do país, para evitar ¿abusos¿. A Aliança Nacional de Usuários e Consumidores (Anauco), por sua vez, conclamou os setores privados a não repassar o reajuste à população.

Avião interceptado Dias depois de ter denunciado uma suposta invasão de seu espaço aéreo por aviões militares dos Estados Unidos, que teriam decolado da ilha caribenha de Curaçao, a Venezuela anunciou hoje que sua força aérea interceptou ¿uma aeronave com matrícula norte-americana¿ cuja tripulação se recusou a fazer contato por rádio com as torres de controle venezuelanas. Segundo o ministro do Interior, Tarek el-Aissami, o avião foi obrigado a pousar no estado de Guárico, na região central do país. As autoridades encontraram ¿traços de cocaína¿ no interior da cabine, mas os ocupantes do aparelho fugiram e eram procurados pelos militares. ¿Os sistemas de navegação mostram que esse avião voou nos EUA, o mesmo país que acusa constantemente o nosso governo de não colaborar no combate ao narcotráfico¿, criticou o ministro venezuelano.

Zelaya vê armadilha

Rodrigo Craveiro Rodrigo Craveiro Hondurenha pró-Zelaya protesta em Tegucigalpa contra projeto de anistia aos militares e a Micheletti

Em entrevista exclusiva ao Correio, por telefone, o presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, ridicularizou a decisão da Corte Suprema do país de aceitar uma denúncia contra seis chefes militares que coordenaram sua deposição, em 28 de junho de 2009. ¿Essa é uma armadilha. A Corte Suprema de Justiça é que conspirou para o golpe de Estado. Estão dando uma oportunidade aos militares que me tiraram do poder de se defender. Mas eles não foram acusados pelo golpe, e sim por uma infração, por um delito menor¿, desabafou. ¿Eles serão absolvidos pela corte de Justiça. Espere um momento e eles serão absolvidos. Ouça o que estou dizendo: na próxima semana, estarão absolvidos.¿

Segundo Zelaya, a Corte Suprema de Honduras é ¿mais responsável pelo golpe de Estado¿ do que os próprios militares. ¿Ela é que infringiu a lei¿, atacou. O líder deposto acredita que a manobra busca incutir na comunidade internacional a ideia de que algo está sendo feito para solucionar a crise política. ¿A cúpula militar depende do poder civil. Se o presidente de facto (Roberto Micheletti) considera que houve um delito, deveria restituir ao general Romeo Vásquez (do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas), acrescentou Zelaya. O presidente da Corte Suprema, Jorge Alberto Rivera, acatou a acusação contra os comandantes, entre eles o próprio Vásquez. Os oficiais responderão pelo crime de ¿abuso de autoridade¿ por terem detido e expulsado Zelaya do país. O líder deposto encontra-se refugiado na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, desde 21 de setembro. A expectativa é de que as audiências comecem depois de amanhã.

Apesar de reconhecer a impossibilidade de voltar ao governo, Zelaya acredita que o diálogo é a única saída para a crise. ¿As violações dos golpistas foram apoiadas pelos Estados Unidos¿, atacou. Ele defende uma nova estratégia de negociação. ¿A estratégia que tínhamos, apoiada pela ONU e pela OEA, foi rejeitada pelo presidente de facto e pelos Estados Unidos¿, acrescentou. Questionado sobre quanto tempo ainda ficará na Embaixada do Brasil, em Tegucigalpa, Zelaya afirmou: ¿Estou aqui numa luta política e social pelos interesses do povo latino-americano, pela democracia. E estarei aqui na medida em que o povo do Brasil e o presidente Lula me permitam¿.

Ao lado de Zelaya, Rasel Tomé ¿ coordenador da resistência e braço-direito do presidente afastado ¿ criticou a medida. ¿As acusações são fruto de uma conversa entre compadres. As instituições que se colocaram a favor do golpe agora agem de forma confabulada¿, denunciou. ¿O Ministério Público apresentou uma acusação por delitos superficiais, não pelas violações de direitos humanos, os mais de 130 assassinatos, as torturas, as detenções ilegais e o fechamento dos meios de comunicação¿, acrescentou. O Congresso, controlado por apoiadores de Micheletti, deve votar ainda hoje um projeto de anistia que incluiria tanto os militares quanto Zelaya.

Para saber mais Estatismo do século 20

Silvio Queiroz

A desvalorização abrupta do bolívar, com impacto esperado sobre uma inflação já alta (taxa anual de 15%) e uma economia estagnada (o PIB venezuelano caiu 2,9% em 2009), soa como sinal de que o modelo chavista dá sinais de esgotamento. Mais ainda diante da crise financeira global deflagrada em setembro de 2008. Com o caixa baixo em razão da baixa dos preços do petróleo ¿ praticamente a única fonte de divisas do país e, sob Chávez, o fermento de subsídios e políticas sociais assistencialistas ¿, o ¿socialismo bolivariano¿ tornou-se refém do mercado internacional de divisas.

Essa ironia decorre de opções que mesmo economistas de esquerda (até os marxistas) consideram hoje temerárias. Uma delas, especialmente relacionada às dificuldades presentes da Venezuela, foi a decisão do presidente de responder à crise global com uma política generalizada de substituição de importações. Para incentivar determinados setores industriais, por exemplo, o governo recorre a subsídios e outras medidas protecionistas que distorcem as relações econômicas e acabam retardando o desenvolvimento, ao invés de induzi-lo.

O retrato dos impasses que confrontam o ¿socialismo do século 21¿ ¿ segundo a definição propositalmente vaga de Chávez ¿ está no paradoxo de que um país com abundância de petróleo e gás tenha de racionar eletricidade. De maneira análoga, a natureza política do projeto chavista baliza a resposta do governo a cada um dos desafios: invariavelmente, o caminho é o dirigismo estatal, marca registrada das fracassadas experiências socialistas do século 20.