Título: Desordem em Wall Street
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2008, Opinião, p. A10

Um sistema fundado em valores que decorrem da máxima "vícios privados, benefícios públicos", não poderia dar em boa coisa. A idéia de que o egoísmo do agente privado, buscando de forma compulsiva seu próprio interesse, conspira para a elevação do bem-estar da sociedade, está mais uma vez desmoralizada. A auto-regulação do mercado, ícone liberal ressuscitado nas últimas décadas, revela-se uma ameaça grave à estabilidade social e econômica mundial.

A justificação econômica do livre-mercado, auto-regulado, está na sua capacidade de ampliar a produtividade e de transformar a base material da sociedade. No entanto, se a máquina de produção capitalista tem sido um sucesso histórico, a distribuição de seus resultados nunca resultou de mecanismos automáticos, e sim de longas lutas políticas e das cinzas de crises desastrosas. E se essa ordem social vem sobrevivendo a seguidos cataclismos é porque desenvolveu instituições para absorver as demandas sociais das massas excluídas.

Em "A Grande Transformação", Karl Polanyi esclarece que o mercado capitalista não é um fenômeno natural decorrente da evolução milenar das trocas de excedentes entre produtores independentes, mas uma mudança abrupta da vida tradicional, construída pela decisiva ação dos Estados nacionais modernos. Assim, o funcionamento de uma economia monetária exigiu o desenvolvimento jurídico-político de um mercado de dinheiro, operando sob a supervisão do Estado; de um mercado de terras, destituído do sistema de privilégios feudais; de um mercado de trabalho, com trabalhadores livres e subsumidos ao capital. Todos eles dependendo de uma instituição fundamental, o contrato privado com força legal.

Essa criatura liberal, o mercado auto-regulado, nunca existiu na história do capitalismo, pois é uma contradição insuperável. A revolta contra o seu criador, o sistema político, nunca foi capaz de obliterar que este teve e tem um papel fundamental na estrutura econômica moderna. O contramovimento de regulação no final do Século XIX e início do XX foi uma necessidade para a continuidade do processo de desenvolvimento econômico e social; a criação do Fed, em 1913, decorre dos abalos do crash de 1907; a lei Glass-Steagall de 1933, do crash de 1929, e o tratado de Bretton Woods, em 1944, da organização do Pós-Guerra sob hegemonia norte-americana. Cada país adotou sistemas regulatórios semelhantes e a seu tempo.

O colapso de Bretton Woods, em 1971, marca o início da grande desordem. E é acompanhado por um evangelho da desregulação. Os liberais voltam à cena com sua pregação adjetiva pelo livre-mercado. Reduzir o Estado paquidérmico, quebrar a coluna dos sindicatos atrasados, cortar os gastos sociais ineficientes, desregular o mercado financeiro criativo e abrir as comportas para o livre fluxo de bens e serviços, capitais, mas não de trabalhadores pobres.

O balanço deste período de resgate da hegemonia das políticas liberais ainda está para ser feito. Mas os que se arriscaram a fazê-lo, mesmo que de forma preliminar, apontam uma regressão nas conquistas sociais do Século XX e um brutal aumento da volatilidade econômica.

Mas, acrescento um ponto. Esta conflagração, que já dura quase 40 anos, resultou em um paradoxo - o Estado continua crescendo. Isto porque a hegemonia política neoliberal não pôde riscar da história as massas organizadas criadas pela própria dinâmica histórica capitalista e teve ao mesmo tempo que atender aos seus clientes da plutocracia, sem conseguir desmontar a estrutura de Welfare State, que continuou crescendo - lentamente, mas crescendo. Alimentar a alta finança, os senhores da guerra e ao mesmo tempo os sistemas de seguridade social exige certamente um Estado maior. Viciados em canhões e band-aids.

A volatilidade pós Bretton Woods tem sido intensa. A professora Conceição Tavares e o professor L. G. Belluzzo já identificaram as causas deste fenômeno, em artigo escrito em 1983. Bretton Woods oferecia um marco de previsibilidade para o cálculo capitalista, fundado na âncora do dólar-ouro, em juros baixos e matérias-primas baratas. O fim destas âncoras do sistema torna o cálculo capitalista uma aventura ainda mais complexa, o que exigiu o desenvolvimento de uma sofisticada rede de novos instrumentos financeiros, para hedge das decisões. A dimensão financeira passa a integrar o processo de concorrência no setor não-financeiro capitalista.

Com o livre fluxo de capitais e a desregulação financeira, a capacidade de operações de arbitragem entre mercados passou a ocorrer em escala global, com supervisão escassa. Terremotos em mercados locais passaram a se transmitir por todo o sistema financeiro mundial. Os especuladores mais argutos construíram fortunas nesse processo, enquanto países eram demolidos, moedas arrasadas e empregos perdidos. Os debaixo, perplexos, vendo os gênios das finanças se transformarem em bilionários mais ricos que nações inteiras.

Um liberal de linhagem diria que uma bela rosa exige que os brotos mais tênues sejam sacrificados. O interessante é que a história revela que as grandes fortunas, com freqüência, foram feitas por meio dos favores do Estado, legais ou ilegais. Não há magnata que não tenha obtido benesses dos cofres públicos. A acumulação primitiva não é apenas um processo na origem do capitalismo, ela é uma forma recorrente de extração de riqueza por meios políticos, extra-econômicos. Por isso a regulação e a democracia plena são tão necessárias.

Wall Street esfacelou-se. Não apenas porque está tendo prejuízos brutais, mas porque desmoralizou os fundamentos do sistema auto-regulado. As instituições de mercado não funcionaram, pelo contrário, conspiraram contra a fé pública. O juízo competente, dos magos econometristas, desmoronou em 1998, quando dois prêmios Nobel de economia provocaram um furacão com o fundo de hedge LTCM. Algum tempo depois, em 2001, os filhos diletos do mercado livre, a Enron, Worldcom e muitos outros, forjaram seus balanços, enganaram seus acionistas, os fundos de pensão de seus empregados e quebraram em escândalo fragoroso. Quem deveria fiscalizá-los, para tranqüilidade dos stakeholders, os auditores da Arthur Andersen, esconderam as suas falcatruas.

Agora, a bolha do subprime continua mostrando as entranhas de um sistema corrompido. Desta vez, não foram os auditores, foram as agências de classificação de risco, usualmente tão severas com os países emergentes. Estas consideraram como AAA, de altíssima qualidade, títulos derivativos, garantidos por hipotecas de alto risco. Os mutuários subprimes eram apelidados pelo Mercado, que tudo sabe, de Ninjas - no income, no jobs, no assets - sem renda, emprego e patrimônio.

Grandes bancos de investimentos embrulharam estes títulos e venderam mundo afora. AAA. O conto do vigário não se sustentou, não poderia. Neste momento, resgatar o sistema é fundamental, pois um colapso terá um custo brutal e planetário. As ações do Fed e do Tesouro americano seguem neste caminho, socializam o prejuízo, mas salvam o sistema. Vamos esperar que tenham resultado e que os responsáveis pela crise sejam penalizados e uma nova regulação, construída.

Antonio Prado é economista, mestre e doutor pelo IE-UNICAMP, professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado). Foi da Direção Técnica do Dieese (1990 a 1999) e atualmente é chefe da Representação do BNDES em Brasília.