Título: Patrimônio em baixa e ação em alta
Autor: Ragazzi, Ana Paula; Camba, Daniele
Fonte: Valor Econômico, 08/09/2008, Investimentos, p. D1

Pense num investimento que bate todos os outros existentes no planeta, com a possível exceção de alguns ilegais. E não estamos falando de 110% do certificado de depósito interbancário. O negócio aqui é crescimento de três dígitos. Segurança em tempos de crise? Rentabilidade imbatível no curto, médio e longo prazos? Os papéis da Ferragens Haga lideram com folga as maiores variações da bolsa no ano. A fabricante de fechaduras de Nova Friburgo (RJ) é concordatária e tem um patrimônio negativo de R$ 111,4 milhões. E o patrimônio está assim desde 1997, pelo menos, o que não impediu de a ação valorizar 11.683% em dez anos e 49.575% em cinco anos.

A história se repete com empresas como Recrusul, DHB, Gazola e Minupar, todas entre as maiores altas da bolsa neste ano. E, no longo prazo, há casos clássicos, como a Cobrasma, com variações acima dos 1.000%.

Mas esperem um momento crianças, não tentem esse truque no seu home broker. Antes de mais nada, uma ressalva - uma, não; serão muitas. Estamos entrando no universo das empresas "sem liquidez", ou seja, que não têm negociação constante. Se o investidor conseguir comprar, não sabe quando vai poder sair. Mais do que isso, são companhias cujos "fundamentos" operacionais podem ser extremamente frágeis ou difíceis de interpretar com clareza. Elas podem ou não estar passando por reestruturações, e distinguir quais são as boas oportunidades exige técnica, habilidade e muito sangue-frio.

É bom atentar para alguns fatos antes de ceder à tentação. O primeiro é que muitas dessas ações valem centavos, o que facilita grandes variações percentuais. E, para ganhar na bolsa, variações fantásticas não são suficientes: é preciso conseguir vender, o que pode ser uma tarefa bastante difícil nesses casos.

Vale a pena? Difícil dizer. O que dá para afirmar é que os números são impressionantes e, aparentemente, uma anomalia do mercado brasileiro. Das 398 empresas listadas na Bovespa, 64 estão com patrimônio líquido negativo, ou 16% do total. No México, 123 empresas estão na bolsa e apenas uma está nessa situação. Nos Estados Unidos, das 1.247 empresas na bolsa, 37 (3%) têm PL negativo.

O fato isolado de uma empresa ter pouquíssima liquidez ou mesmo de estar com patrimônio líquido negativo não é suficiente para fazer um juízo de valor da qualidade do ativo, mas gestores e analistas alertam que tampouco se deve escolher com base só em variações passadas e especulações em fóruns de internet, por exemplo.

O administrador de carteiras Jayme Ghitinick explica que muitos papéis com preço na casa dos centavos e baixa liquidez acabam sendo um terreno fértil para especulações ou manipulações, o que pode ser a explicação das altas rentabilidades apresentadas.

"Com as altas sucessivas que ocorreram por anos na bolsa, foi ficando mais difícil encontrar nichos para ganhar dinheiro e por isso alguns investidores se especializaram em operar com esses papéis", diz Ghitinick. "Aparentemente são grupos que escolhem um papel para operar e ficam comprando e vendendo entre si, o que resulta numa variação percentual chamativa, uma vez que muitos desses papéis custam centavos", completa. É comum o movimento ser seguido por comentários sobre o papel em chats e fóruns da internet ("Podemos ficar ricos: Gazola, a ação do ano", é o título de um deles) sobre eventuais novidades que estariam para acontecer na companhia.

A Bovespa não possui uma regra para tirar do pregão empresas com queda forte dos preços ou mesmo com patrimônio líquido negativo. O patrimônio líquido é a diferença entre os ativos - tudo o que a empresa possui ou tem a receber - e os passivos, que são principalmente as dívidas. Um PL negativo significa que, se a empresa tivesse que vender seus ativos para pagar seus compromissos, o dinheiro não seria suficiente.

Ricardo José de Almeida, professor do Ibmec São Paulo, faz a ressalva de que o fato de ter PL negativo não necessariamente significa que a empresa poderá quebrar. "Esse resultado pode ser conseqüência de um desempenho passado, mas nada impede que a partir de um novo exercício a companhia possa se recuperar", diz. Ele avalia que a bolsa não deve estabelecer nenhum norma para a exclusão dessas empresas para que elas possam ter a chance de se restabelecer. No entanto, é bom lembrar que muitas delas estão em situação delicada há alguns anos, sem mostrar sinais de virada.

A Cobrasma, por exemplo, encerrou a produção de equipamentos para transporte rodoviário e ferroviário em 1998 e sobrevive hoje de eventuais receitas com a locação de máquinas e equipamentos. O imóvel da fábrica em Hortolândia (SP) foi tomado por ex-empregados.

Algumas bolsas têm limites de negociação, e papéis que caem na casa dos centavos costumam ser despejados. A Bovespa adota uma medida um pouco mais tímida para tentar contornar o problema - a bolsa tem entrado em contato com as companhias e sugerido que elas optem pelo grupamento de ações quando o preço está muito baixo, o que aumenta a instabilidade e dificulta a eficiência na formação dos preços.