Título: Ritmo de queda do trabalho infantil diminui
Autor: Maia, Samantha
Fonte: Valor Econômico, 01/10/2008, Brasil, p. A6

O Brasil tem seguido a cartilha de políticas para erradicação do trabalho infantil, com crescimento dos programas de transferências de renda condicionados à freqüência escolar. Esse modelo, porém, começa a dar sinais de limite, segundo análise de especialistas, mostrando que as políticas de educação devem ser reforçadas. O índice de pessoas de 5 a 17 anos ocupadas no país caiu do patamar de 20% no começo dos anos 90 para 12,7% em 2001. Desde então, a queda passou a ser mais lenta, com evolução de menos de 0,5 ponto percentual por ano, e interrupção da tendência positiva em 2005, quando o índice, 11,8%, cresceu em relação a 2004 (11,4%). Hoje a taxa está em 10,8%.

A queda nos últimos dois anos é atribuída ao aumento do alcance do Bolsa Família, sua extensão para jovens de 17 anos, e à antecipação da obrigatoriedade do ensino a partir dos seis anos, entre outras políticas de acompanhamento dos jovens. A desaceleração do ritmo de queda e a quase estagnação do nível de emprego infantil, contudo, revelam, segundo especialistas, que a pobreza não é mais o principal fator que impulsiona esta ocupação no Brasil. "É preciso relativizar o impacto da pobreza. Hoje ela não é o único fator, nem o mais forte no caso brasileiro", diz Renato Mendes, Coordenador Nacional Programa Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC) da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.

Segundo ele, de 2000 para cá, a transferência de renda ganhou mais força frente as ações socioeducativas, e, assim, o combate ao trabalho infantil fica enfraquecido. "A tecla em que precisamos bater é a da educação. Não adiantar cobrar a freqüência, é preciso disponibilizar escola em tempo integral, tornar a educação atrativa", diz Mendes. O Bolsa Família tem como condicionalidade o acompanhamento de ações socioeducativas para crianças que trabalham. Se não há serviço disponível, porém, a cobrança não pode ser feita, segundo a Portaria 666, de 28 de dezembro de 2005, que integrou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti).

Em 2007, o Sul passou a ser a região com maior índice proporcional de trabalho infantil do país, posto antes do Nordeste. Enquanto no Nordeste a queda do índice foi de 14,4% em 2006 para 13,4% em 2007, o Sul manteve o percentual de 13,6%, com alta do nível de ocupação entre os adolescentes de 16 e 17 anos, hoje em 43,4%.

Segundo Mendes, pesa a questão cultural, já que o problema brasileiro hoje está concentrado na zona agrícola, onde é aceitável socialmente que as crianças acompanhem seus pais no trabalho. Outro fator, diz, é a insuficiência de serviços públicos de educação e saúde de qualidade.

Apesar do Bolsa Família atender hoje 15 milhões de crianças, a escolarização das crianças e adolescentes que trabalham caiu de 81% para 80%, uma queda em todas as faixas etárias com exceção dos 14 e 15 anos, onde o nível se manteve praticamente estável, passando de 84,2% para 84,7%. É um sinal de que a escola tem dificuldade de ganhar a disputa com o trabalho.

Segundo Bernardo Kliksberg, economista e sociólogo argentino, especialista em responsabilidade social corporativa, 50% do desempenho escolar das crianças está ligado à família, o que mostra a necessidade dos governos investirem na qualidade de vida também dos pais. "Combater o trabalho infantil tem que ser uma política de Estado, e não adianta apenas proibir. No Brasil há uma idade mínima por lei para trabalhar, mas não adianta punir, é preciso criar alternativas", diz.

Isa Oliveira, secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), diz que a queda da escolaridade entre as crianças trabalhadoras no Brasil é um dos alertas mais preocupantes da última Pnad. "A escolarização cresce no país, mas não entre essas crianças trabalhadoras. A transferência de renda tem que garantir que a criança possa construir uma condição de vida melhor que a de seus pais." Segundo ela, programas como Bolsa Família são positivos, mas limitados para combater o trabalho infantil. "O patamar de crianças e adolescentes trabalhando ainda é muito alto, isso mostra que é preciso articular iniciativas na área de educação e saúde", diz.

Apesar desses alertas, o coordenador da OIT destaca que a Pnad deste ano traz um dado esperançoso sobre o trabalho de crianças de 5 a 9 anos. Se o ritmo de 2007, com redução de 27,6% da mão-de-obra dessas crianças, se mantiver, em três anos será possível erradicar o trabalho nessa faixa etária. No ano passado existiam 157 mil crianças com até 9 anos trabalhando.

A tendência de maior diminuição do trabalho entre as crianças mais novas é mundial. "O combate ao trabalho infantil está avançando em todo o mundo, e a diminuição tem se dado mais fortemente entre as crianças mais jovens", diz Hamid Tabatabai, economista da OIT. O ritmo da redução do trabalho infantil no mundo tem sido mais forte nos trabalhos perigosos, que oferecem risco à vida. De 2000 a 2004, esse tipo de ocupação caiu 26% entre crianças de 5 a 17 anos, e mais fortemente, 33%, entre as crianças de 5 a 14 anos. A OIT estabeleceu a meta de abolir o trabalho infantil nas suas piores formas no mundo até 2016. Na América Latina, onde há cerca de 18 milhões de crianças trabalhando, a meta foi antecipada para 2015.

Por ser o único país da região com um Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e por conseguir institucionalizar um programa de transferência de renda, o Bolsa Família, o Brasil é tido hoje como referência no combate ao trabalho infantil na América Latina. A taxa brasileira de 10,8% está bem abaixo de países como o México, com 37% e o Peru, com 27%.

Segundo levantamento da OIT, há cerca de 16 países na América Latina com programas de transferência de renda, sendo que Brasil e México são os únicos que possuem políticas mais estruturadas. Os demais têm projetos menores, ainda pilotos, e na sua maioria financiados por capital externo. "Quando o financiamento se dá por fundos externos, e não por recursos próprios, é mais difícil manter", diz Tabatabai.

Na África também há casos de projetos pilotos em cerca de 20 países, programas que chegam a atender 5 mil famílias. Uma das maiores dificuldades de transferir renda é fazer um bom acompanhamento dos indicadores. "Fica difícil mensurar o impacto dessas iniciativas sobre a redução do trabalho infantil quando ele não é colocado como uma das metas diretas do programa, como é feito no programa brasileiro Peti", diz o economista da OIT.

Segundo último levantamento do Bolsa Família, de abril e maio deste ano, apenas 1% das crianças atendidas não atingiram a freqüência escolar mínima exigida, de 85% para alunos de 6 a 15 anos, e de 75% para jovens de 16 e 17 anos. "Desde o início do programa, o percentual de freqüência nas aulas tem crescido ou se mantido", diz Camile Mesquita, diretora de Gestão dos Programas de Transferência de Renda do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Hoje 695 mil crianças atendidas pelo Bolsa Família também fazem parte do Peti.

Com o repasse de renda às famílias, Tabatabai diz que o essencial é fazer a criança ir para a escola. "Transferir renda é uma forma de cobrar isso, mas ela tem um limite." Colocar a co-responsabilidade sobre os pais e relacionar o combate ao trabalho infantil a outras políticas de educação, de saúde e de emprego, são os próximos passos. "O objetivo é reduzir a pobreza no longo prazo e levar alternativas a essas crianças."

A jornalista viajou a convite da Fundação Telefônica