Título: Preso à polêmica
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 20/02/2010, Brasil, p. 8

Plano proposto pelo CNJ prevê fiança em todos os crimes, videoconferência para documentar depoimentos e o direito de votar dos presos ¿ temas que encontram resistência entre os experts

Um lugar ao sol também no sistema eleitoral: possibilidade de permitir que os presos votem é um dos pontos mais discutidos do plano do CNJ

Em 154 páginas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomenda uma ampla modernização numa área importante do direito. O Plano de Gestão para o Funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal, cujo prazo para consulta pública terminou ontem, aborda desde questões administrativas, como a estrutura física e tecnológica dos órgãos, até pontos controversos no que diz respeito à legislação brasileira. Recomendações como a instituição de fiança para todos os tipos de crime, a negociação de penas, a utilização de sistema audiovisual para documentar depoimentos e o direito de votar dos presos são alguns dos aspectos polêmicos do documento. Especialistas são unânimes em enaltecer o plano, de forma geral, mas discordam seriamente em temas específicos.

Para o conselheiro do CNJ e relator do plano, Walter Nunes, o documento estabelece um planejamento nacional para a área criminal, eleita pelo conselho, dentre as atividades jurisdicionais, uma das mais carentes de gerenciamento. ¿Por isso, desenhamos nesse estudo práticas e rotinas para acelerar o andamento das ações. Abordamos a parte física, o parque tecnológico e também fizemos proposições de alterações normativas ao processo penal. Levaremos tais apontamentos ao Congresso Nacional, cumprindo um papel importante que o CNJ tem¿, explica o conselheiro. Ciente da controvérsia de alguns pontos, Nunes explica que todas as sugestões do documento são fruto de debates travados dentro do conselho e resoluções publicadas.

Para ele, um dos temas mais polêmicos do plano está na recomendação de implantar no Brasil a possibilidade de negociação da pena, muito comum nos Estados Unidos. ¿Ampliando o que já fizemos aqui nas audiências de conciliação, daríamos uma redução significativa da pena aos acusados que assumissem sua culpa, variável de um sexto a dois terços, dependendo da violência praticada no crime¿, explica Nunes. No entanto, são muitos os problemas apontados por doutrinadores. Um deles é o risco de o réu pobre, sem boa assistência, que bem defendido poderia ser inocentado, acabar assumindo algo que não fez. ¿São muitas as críticas, a questão é delicada. Mas eu sou favorável, pois poupa o Judiciário, economiza dinheiro, agiliza os processos¿, diz o criminalista Alberto Toron, secretário-adjunto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Toron não concorda, entretanto, com a recomendação de garantir o direito de voto dos presos no Brasil. ¿Pressuposto de voto é liberdade. Onde há gente privada de liberdade, existe possibilidade de se fazer curral eleitoral. Acho perigoso¿, destaca o especialista. Walter Nunes, no entanto, defende veementemente o tema. ¿Há uma iniciativa aqui e ali para garantir esse direito que não lhes foi tirado pela sentença. O que queremos é uma atenção verdadeira nesse aspecto¿, afirma. Ao contrário de Toron, o conselheiro do CNJ acha positivo que os políticos façam campanhas dentro de presídios. ¿Seria bom para que eles vissem a realidade desses estabelecimentos¿, destaca.

Embora existam leis de 2008 e 2009 sobre videoconferência para interrogatório de testemunhas, Nunes explica que o plano traz regras de como isso deve ser feito. E também reafirma a transcrição dos diálogos como desnecessárias. ¿Isso já está na legislação, mas mesmo assim o que ocorre na prática é juiz de tribunal pedindo a juiz de primeira instância para fazer degravações, meramente por uma questão pessoal, de hábito. Isso não pode ocorrer¿, destaca. Igualmente resguardado em lei existente, o CNJ sugere, no documento, a utilização preferencial de recurso audiovisual para a documentação de depoimentos.

O monitoramento eletrônico de presos em regime aberto é outro ponto que provoca debate há algum tempo no país. Presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Rio de Janeiro, Wagner Cavalcanti de Albuquerque pondera sobre as implicações do sistema tecnológico de vigilância. ¿Traz constrangimentos inegáveis para o sujeito, que terá de usar uma pulseira. Mas acho que pode ser uma medida positiva¿, afirma. A despeito dos questionamento sobre eventuais estigmas causados pelo sistema, Nunes indaga: ¿Há algo mais agressivo e desumano que o sistema carcerário brasileiro?¿. O conselheiro explica, porém, que pela sugestão do CNJ, submeter-se ao monitoramento será facultativo. ¿Quem não quiser, não progride de regime¿, afirma. Todas as mudanças discutidas, com exceção da videoconferência e do registro audiovisual de depoimentos, necessitam de modificação na lei.

Pressuposto de voto é liberdade. Onde há gente privada de liberdade, existe possibilidade de se fazer curral eleitoral. Acho perigoso¿

Alberto Toron, secretário-adjunto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

Pontos em discussão

Além de sugestões sobre estrutura física, quadro funcional e parque tecnológico das varas criminais e de execução penal, o documento elaborado pelo CNJ propõe algumas mudanças legislativas e recomenda práticas, já previstas em lei, dentro dos tribunais:

Instituição da fiança para todos os tipos de crime

Monitoramento eletrônico de presos em regime aberto

Criação de um sistema de proteção e assistência aos juízes em situação de risco

Criação do Fundo Nacional de Segurança do Judiciário

Utilização de sistema audiovisual para documentação de depoimentos

Videoconferência para interrogatório de testemunha

Garantia do direito de voto aos presos

Possibilidade de negociação da pena, mediante confissão de culpa

Correção ou drama?

Outro ponto polêmico do Plano de Gestão para o Funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal está na instituição da fiança para todos os crimes, sem distinção. Relator do documento, o conselheiro Walter Nunes explica que a medida corrigirá uma incongruência vista desde 1975, quando um dispositivo afrouxou a prisão de pessoas que respondem a processos. ¿Então, o que acontece hoje é que se eu pratico um roubo, portanto crime menos grave e para o qual há fiança, tenho de pagar se quiser ficar solto, desde que não haja nenhuma condição para prisão preventiva, como ameaça à ordem pública ou destruição de provas. No caso de crime inafiançável, basta que eu não me enquadre em nenhuma condição para prisão preventiva¿, destaca Nunes.

E completa: ¿No nosso ordenamento, atualmente, só fica preso quem apresenta motivos para a prisão preventiva. Então a instituição da fiança para todos os crimes corrige essa distorção¿, destaca Nunes. Presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Rio de Janeiro, Wagner Cavalcanti de Albuquerque vê com cautela a medida. ¿Imagine incluir crimes como pedofilia, tráfico de drogas, entre outros¿, preocupa-se. Para Toron, a medida é benéfica. ¿Preservando-se, claro, os crimes inafiançáveis contidos na Constituição Federal, acho que a instituição da fiança equilibra um sistema que está desequilibrado¿, destaca. (RM)