Título: Muitas crianças ainda sustentam suas famílias
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Fonte: Valor Econômico, 01/10/2008, Opinião, p. A14

O programa Bolsa Família está elevando significativamente a freqüência escolar, mas não tem efeitos tão expressivos e rápidos na redução do trabalho infantil. Segundo estudo divulgado ontem pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - "Por que a Bolsa Família não está retirando as crianças do trabalho?" -, baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007, existem hoje no Brasil 2.500.842 crianças entre 5 e 15 anos que trabalham - em cada 100 crianças brasileiras, seis estão trabalhando. Nesse universo dos menores que trabalham, 20 mil não estudam. Entre as crianças de 5 e 15 anos, existem 62.521 que não estudam nem trabalham.

O problema apontado no estudo refere-se especialmente ao grupo de crianças que só trabalham - a porcentagem de menores nessa situação tem se mantido inalterada, enquanto o grupo das crianças que só estudam tem aumentado e o daquelas que estudam e trabalham tem se reduzido.

O estudo do Ipea levanta duas hipóteses para explicar a morosidade da eficácia do Bolsa Família na redução do trabalho infantil. A primeira delas é a de que o valor do benefício não seja suficiente para retirar as crianças do mercado de trabalho. A segunda é que existe um problema de controle: não há penalidades para quem não cumpre as condicionalidades do programa (manter as crianças na escola e vaciná-las), o que acaba resultando em crianças que recebem o Bolsa Família mas continuam trabalhando.

Segundo o estudo, as crianças ainda são responsáveis por importante parcela da renda das famílias. Em 36% das famílias brasileiras, os menores de 15 anos que não freqüentam a escola são responsáveis por algo entre um terço e 100% da renda familiar; as crianças de 5 a 15 anos que trabalham e estudam participam, em média, com apenas 7% do orçamento familiar. As crianças que apenas trabalham ganham, em média, R$ 226; as que trabalham e estudam conseguem uma renda de até R$ 151. No ano passado, data do Pnad que é a referência do estudo do Ipea, uma família em extrema pobreza e com três filhos beneficiados pelo programa de transferência de renda conseguia ganhar, no máximo, R$ 112 por mês.

De qualquer forma, a ausência do Bolsa Família seria mais danosa para as crianças pobres. Em primeiro lugar, porque o programa beneficia especialmente as famílias que dependem da renda do trabalho infantil. Em segundo, porque o benefício, mesmo sem controles adequados, aumentou a freqüência escolar. O estudo do Ipea aponta indícios de que, embora não tenha sido suficiente para eliminar o trabalho infantil, o programa de transferência de renda reduziu o número de horas trabalhadas por essa parcela da população. Segundo o Pnad de 2007, as crianças de 7 a 15 anos que ajudam na renda familiar trabalham, em média, 20,1 horas quando estudam, e 35,3 horas se não estudam. Entre as crianças que trabalham e não vão na escola, 55% têm uma jornada de 40 horas semanais. Entre as crianças que trabalham e estudam, essa jornada de gente grande é cumprida por 11%.

Se, num primeiro momento, o Bolsa Família permitiu um enorme salto em melhoria de distribuição de renda e segurança alimentar, agora, com esses efeitos já incorporados, deveria passar para uma segunda etapa, de efetiva proteção à infância. Estudos recentes derrubaram alguns mitos, como o de que o Bolsa Família pode ter o efeito adverso sobre o adulto do núcleo familiar beneficiado, de desincentivá-lo ao trabalho. Segundo estudo do Centro Internacional de Pobreza, instituto de pesquisa do Pnud, em conjunto com o Ipea, sobre dados de 2004, entre as pessoas com a mesma faixa de renda, a presença no mercado de trabalho é maior entre os beneficiários do Bolsa Família. O grande desafio, agora, é fazer com que o programa de transferência de renda cumpra efetivamente o papel de eliminar o trabalho infantil. Tirar a criança pobre do mercado de trabalho e dar a ela uma escola com qualidade semelhante a de crianças com melhores condições econômicas é a única garantia de mobilidade social e esperança de futuro que o governo poder dar a essas pequenas pessoas que hoje sustentam suas famílias.