Título: Freio de mão puxado dispensa alta de juros
Autor: Landim, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 02/10/2008, Brasil, p. A4

A crise internacional é um "freio de mão" para a economia brasileira, avalia José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda e sócio da MB Associados. Ele afirmou, em entrevista ao Valor, que o mundo sofre com um aperto de crédito "sem precedentes" e que esse será o principal canal de contágio para o Brasil. "É o famoso freio de mão em um ônibus acelerando". Ricardo Benichio/valor Jose Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica: empresas hoje demandam mais crédito pelo próprio crescimento

O diagnóstico do economista é que a média das empresas brasileiras "está sólida, mas alavancada", depois de seis trimestres de crescimento forte do país. Ao produzir mais e vender mais, as empresas precisam de mais capital de giro e também planejam investimentos. "Com exceção de Petrobras e Vale, ninguém tem geração de caixa suficiente para expandir a produção sem pedir emprestado para algum banco".

Para Mendonça de Barros, o efeito do "tranco do crédito" é até mais eficaz que a política monetária, logo não há motivos para se preocupar com a inflação e o Banco Central deveria terminar mais cedo o ciclo de alta de juro. "Não é estimular o crescimento, mas reconhecer que vivemos uma secura de crédito que pode ter efeitos muito ruins para a economia". Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Valor: A crise internacional está muito longe de acabar?

José Roberto Mendonça de Barros: No melhor cenário, com a aprovação de um pacote razoável essa semana nos Estados Unidos, teremos um enxugamento da liquidez, com os bancos centrais constantemente irrigando o mercado interbancário, e um processo longo de recuperação na credibilidade no sistema. É disso que se trata. Mesmo com um primeiro passo a caminho da solvência, a recuperação da confiança será lenta. As implicações para o Brasil são volatilidade e um brutal aperto de crédito, sem precedentes. Está havendo um "clean up" geral de linhas no mundo todo. No Brasil, forte restrição do crédito em dólar.

Valor: E no cenário pessimista, se o pacote não for aprovado?

Mendonça de Barros: Vamos ter uma crise muito maior. É grave mesmo. É como recaída de pneumonia, que se torna séria em um organismo enfraquecido. Corremos o risco de queda abrupta no crescimento, que vai levar o mundo inteiro, não tem como escapar. Acredito, e o mercado também, que o pacote vai sair. Na segunda-feira, tivemos uma ausência de liderança na votação na Câmara dos EUA, com um presidente que não consegue nem puxar o parabéns a você. E, simplesmente, a riqueza americana caiu US$ 1 trilhão. É uma mensagem forte, por mais conservador que seja o representante americano. Se não acontecer, não sei onde vai parar. Vamos nadar por águas desconhecidas. Com uma travada grande de crédito, o efeito na economia real pode ser forte, com epicentro nos EUA, mas espalhando para tudo que é lado. A MB tem 30 anos, e nunca vi nada remotamente parecido com essa crise. Trabalhamos com a hipótese de que o impossível não acontece. O pior cenário não tem preço. Vai ser pânico mesmo. E não sei botar número no caos.

Valor: O Brasil também será duramente atingido?

Mendonça de Barros: Não ficamos fora de um negócio desse tamanho. Já estamos vivendo aqui um choque de crédito, que começou há 10 dias. Se durar mais quatro dias, coisas desagradáveis acontecem nas empresas, mas não é o fim do mundo: usam o caixa, cheque especial, atrasam o pagamento, diminuem a operação. Mas você não faz isso por dois meses. O fato mais importante para o Brasil no cenário mais ou menos ou no ruim - porque só tem esses dois - é o oxigênio do crédito. Especialmente porque estamos num momento que segue seis trimestres de crescimento em aceleração. Você produz mais e vende mais, portanto precisa de mais capital de giro. E também começa a planejar investimentos novos. Com exceção de Petrobras e Vale, ninguém tem geração de caixa próprio para planejar expansão da produção sem pedir emprestado para algum banco. Pelo capital de giro e pelo investimento, a média das empresas brasileiras está sólida, mas alavancada. Essa crise é o famoso freio de mão num ônibus acelerando.

Valor: Com o aperto do crédito, o investimento vai diminuir?

Mendonça de Barros: Seguramente. Seja fábrica, mina, poço ou loja, se a empresa está naquele ponto que gastou o suficiente e não pode parar, segue em frente. Aquilo que está na prancheta, pára um pouquinho. O que começou a gastar, mas falta dinheiro para o financiamento, eventualmente também pára. No agronegócio, conheço um monte de casos. Vejamos um exemplo, que obviamente não se refere a todas as empresas do setor. Açúcar e álcool é um setor com futuro brilhante, que investe muito, então está alavancado. E foi uma das poucas commodities cujo preço ficou ruim. O desempenho do Ebitda tem sido modesto, portanto, precisa de capital de giro. Isso se replica em outros setores. Estou atento ao crédito, porque é a chave para a internação da crise. Se não tem linha de ACC, afeta a exportação e a produção. Também não é possível atender todos os pedidos, quando o estoque de matéria-prima está desajustado.

Valor: Qual é a sua expectativa para o câmbio?

Mendonça de Barros: Em um cenário com pacote nos EUA, o dólar pode ancorar entre R$ 1,75 e R$ 1,80 no fim do ano e entre R$ 1,85 e R$ 1,90 em 2009. Não acredito em R$ 2 como novo patamar porque ainda temos saldo comercial positivo, reservas e continuidade na exportação de commodities. Essa semana foi um belo exemplo, com uma explosão, mas parou em R$ 1,95 sem grandes atuações do BC. Não é algo que compromete a inflação, mas ajuda um pouco o exportador.

Valor: Qual é a tendência para o preço das commodities?

Mendonça de Barros: Os fundamentos vão voltar a ter mais importância nos mercados de commodities metálicas e agrícolas. A forte subida das cotações de janeiro até o fim do primeiro semestre já foi revertida completamente. Acredito que as commodities vão flutuar com base nos preços de dezembro e janeiro. Exemplos: petróleo a US$ 100 o barril, soja a US$ 10 a US$ 12 o bushel, e milho a US$ 5 o bushel. Para o Brasil, isso é positivo, porque ainda são preços valorizados. O salto do início do ano foi provocado pelo risco de faltar produto, com o mundo crescendo bastante, estoques baixos, sistemáticos problemas na produção, e dólar desvalorizando pesadamente. No fim do primeiro semestre, muito antes de Lehman Brothers, Fannie Mae, e etc, o risco de faltar produto foi desaparecendo. Primeiro, a demanda começou a cair. Por exemplo, a demanda por gasolina nos EUA caiu quase 3 % no primeiro semestre. A oferta também aumentou com a Opep bombando no fim do primeiro semestre algo como 900 mil barris acima da cota. Na produção de grãos, o clima foi mais camarada este ano no hemisfério norte. E finalmente o dólar começou a recuperar. Em 1º de julho, a MB mandou um aviso para todos os clientes, que depois de três anos altistas em commodities, agora achamos que vai cair. Obviamente a crise bancária ajuda. Mas vão cair para onde? Como os estoques ainda são baixos, a demanda por comida e petróleo se mantém relativamente forte, não há risco de faltar produto, mas se mantém no patamar de janeiro.

Valor: Qual é a sua projeção para o PIB em 2008 e 2009?

Mendonça de Barros: Projetamos uma desaceleração do crescimento, mais forte no ano que vem. O PIB de 2008 vai ser pouco afetado, mas a velocidade de ajuste não pode ser subestimada, porque o crédito está desacelerando. As condições para a compra de veículos, por exemplo, já apertaram muito: prazos menores, mais exigências, taxas de juros mais altas, menos paciência com o atraso da prestação. Também temos que lembrar do aperto de crédito das empresas. Tendemos a analisar apenas o empréstimo bancário, mas é preciso recordar que as empresas naturalmente concedem crédito para fornecedores e clientes. Esse crédito é proporcional ao capital de giro. Se falta capital de giro, também falta esse crédito. Tudo isso põe areia na produção. Projetamos alta do PIB entre 3% a 3,5% para 2009. Esse ano, ficará acima de 5%, porque já estamos em outubro. Mas é importante não confundir PIB com movimento de Natal, que será mais fraco.

Valor: Com o recuo das commodities e a desvalorização do real, o que acontece com a inflação?

Mendonça de Barros: A inflação vai ficar relativamente bem comportada no fim do ano que vem. E já está desacelerando por causa de alimentação. Tem menos a ver com a crise, e mais com uma boa oferta. Com uma certa desaceleração da atividade, os preços dos produtos também desaceleram. Seguramente, o ciclo de alta da taxa de juros deve ser menor do que se projetava. Desde junho, estamos abaixo da projeção do mercado, estimando juros a 14,75% no fim do ano. Hoje acredito que é o máximo que pode chegar, mas também pode ser menos. Tem muito a ver como o cenário de câmbio. Se você prevê dólar a R$ 2, o efeito inflacionário fica pior. No nosso cenário, não precisa de mais aumento de juros. O tranco de crédito tem o mesmo efeito da política monetária, aliás, é mais eficaz. Quando aumenta o juro, você supõe que o maior do custo de dinheiro vai resultar em redução de crédito. Quando a redução de crédito é importada de crise internacional, é instantâneo e antecipa com mais intensidade o efeito do aperto monetário. Ainda teremos mais alguma alta de juros, porque não se pode mudar abruptamente, talvez mais duas altas de 0,25 ponto percentual.

Valor: Com commodities em baixa, câmbio desvalorizado e economia interna desacelerando, qual é a perspectiva para o saldo comercial e as contas externas?

Mendonça de Barros: Acredito que o saldo comercial vai ficar perto de zero em 2009, porque vamos ter maior dificuldade para vender produtos manufaturados. A quantidade já estagnada, o que cresce é o preço. Agora pode até cair a quantidade e o preço. A quantidade exportada de commodities se mantém, mas o preço cai na margem. Tudo isso sugere saldo comercial entre US$ 10 bilhões e zero, mais para zero. A desaceleração da economia ajuda um pouco, mas existe uma defasagem na importação por conta de bens de capital. Estaremos internando máquinas no ano que vem que já foram encomendados. Um pedaço da importação é muito sensível à atividade, como carros caros, por exemplo. Para matéria-prima e bens de capital, demora um pouco. Para este ano, o saldo deve fechar em US$ 22 bilhões. Com isso, o déficit em conta corrente vai subir bastante e superar US$ 30 bilhões em 2008.

Valor: O que o governo pode fazer para evitar a contaminação da crise internacional?

Mendonça de Barros: Primeiramente, parar de falar que somos uma ilha da prosperidade. O presidente já parou, mas tem ministro que ainda não. O ideal seria, mas não vai acontecer, gastar menos para fortalecer as finanças. Estamos desacelerando, mas não tem queda brusca da demanda. É importante manter o gasto do investimento do governo, que é uma parte menor da história. A bola está muito na mão do Banco Central, que tem que dosar o aperto monetário. O BC tem instrumentos poderosos, como o compulsório. E vai ter que oferecer um pouco de linha de dólar para a exportação. Não tem muito o que inventar.