Título: Sistema de crédito sobrevive graças aos bancos centrais
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 03/10/2008, Opinião, p. A16

O crédito deixou de fluir nas maiores economias do mundo e a consequência direta da desconfiança generalizada que paralisa os bancos será uma desaceleração econômica maior do que a prevista. O sistema financeiro nas principais praças está sendo mantido graças a uma gigantesca e inédita operação de garantia de liquidez por parte dos bancos centrais e ela até agora não tem sido, por si só, suficiente para debelar a aguda crise de solvência que ganhou força após a falência do Lehman Brothers. O pacote de salvamento de US$ 700 bilhões aprovado ontem pelo Senado americano, e que precisará agora ser votado pela Câmara, não deu ânimo nem trégua a mercados nervosos. As fortes baixas das ações não têm sido mais acompanhadas por altas vigorosas que recobrassem pelo menos uma parte das perdas. A crise se aprofundou.

O crédito nos Estados Unidos e na Europa está sendo sustentado basicamente pelo Federal Reserve Bank, que fornece linhas de US$ 620 bilhões aos bancos centrais europeus. Internamente, o Fed dá liquidez diária de mais de US$ 200 bilhões - US$ 1 trilhão é uma avaliação já conservadora para a quantidade de recursos que está sendo injetada em um sistema quase paralisado. Até que o pacote americano de resgate seja posto em ação, se ele passar pela Câmara, a deterioração das expectativas continuará assombrando os mercados. A paralisia no sistema de crédito afetou a economia e os números de produção, emprego e investimentos nos EUA e Europa começam a apontar para baixo a uma velocidade maior, realimentando a roda de péssimas notícias para os mercados financeiros.

Todos os mecanismos de captação de dinheiro estão cambaleando. O principal deles, o dos empréstimos interbancários, só está funcionando graças aos empréstimos dos bancos centrais. Os bancos preferem manter seu dinheiro no Banco Central Europeu (no dia 30 depositaram US$ 62 bilhões, segundo "The Economist") ou nos líquidos títulos do Tesouro americano, cuja remuneração chegou próxima a zero, a emprestá-lo a outras instituições. O spread entre a Libor de três meses , que referencia o interbancário na Europa, e o T-bond de igual maturação, explodiu e não dá sinais de recuo consistente.

O mercado de título privados, diante desta situação de pânico global, definha a olhos vistos. A emissão de comercial papers nos EUA despencou US$ 208 bilhões nas últimas três semanas, para US$ 1,6 trilhão. O mercado de dívida lastreada em ativos (como hipotecas) caiu 3,9% na semana encerrada em 1 de outubro, para US$ 724 bilhões. A anemia do crédito já atinge empresas de primeira linha com necessidade de caixa e os custos estão obviamente em alta.

O pacote de Bush, apenas um pouco maior hoje que o pacote de liquidez de Bernanke, pode estancar a espiral da desconfiança. Sua lógica é a de retirar títulos imprestáveis das carteiras dos bancos, permitir que eles voltem a emprestar e se recomponham assim os mecanismos de crédito. O Tesouro ficará com o lixo acumulado pelas instituições financeiras em troca de participação acionária e outras condicionantes - na prática, estatização parcial do sistema bancário americano, e que já ocorre do outro lado do Atlântico, com o socorro dos governos a meia dúzia de bancos nos últimos dias. O estilo republicano de socorro impunha pesadas perdas apenas ao contribuinte e foi emendado em boa hora pelo Congresso. O ex-Goldman Sachs Henry Paulson e Ben Bernanke deram um susto nos congressistas, ao apresentarem seu plano como a única alternativa ao caos.

Isso não era inteiramente verdade e uma fração respeitável de analistas acha que o problema seria resolvido de forma menos custosa e sem repousar exclusivamente sobre o Tesouro se o foco da operação de salvamento fosse a capitalização das instituições - um flanco que o pacote aprovado deixa em aberto e que é essencial para o fim da crise. Ao garantir capital (também uma estatização), o Tesouro encontraria parceiros na empreitada - bancos japoneses e chineses já estão fazendo isso. Pela profundidade a que chegou, a atual crise demorará muito mais do que se esperava para ir embora e seus efeitos econômicos serão mais profundos do que o de todas as outras crises do passado recente.