Título: Constituição Cidadã, vinte anos depois
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 03/10/2008, Opinião, p. A16

O início da nossa experiência constitucional, como Estado independente, foi um tanto instável do ponto de vista político e tímido no que diz respeito a direitos. Nossa primeira Constituição, a imperial de 1824, embora incorporasse algumas conquistas liberais e até mesmo debates e trabalhos de uma Constituinte dissolvida um ano antes pelo príncipe regente Dom Pedro I, acabou sendo uma constituição outorgada. Trouxe alguns avanços no campo das liberdades públicas, mas se manteve omissa diante do problema não resolvido da escravidão, da grande propriedade rural improdutiva, da questão indígena e, no contexto desses problemas, da questão dos pobres e excluídos.

A Constituição Republicana, de 1891, também não incorporou a questão social, muito embora o tema já estivesse na agenda política da época, com a abordagem social do cristianismo, os socialistas utópicos, o romantismo eivado do conteúdo social, as obras de Marx e Engels. No mesmo ano em que se promulgava a constituição republicana, o Papa Leão XIII publicava a primeira encíclica social.

O princípio clássico da função social da propriedade só tem espaço no texto constitucional de 1934. Mas foi uma Constituição de vida curta, pois em 1937 o presidente Getúlio Vargas implantou o Estado Novo e outorgou uma nova constituição com caráter autoritário, mas preservando as conquistas sociais da constituição de 1934.

A redemocratização de 1945 traz a convocação de uma nova Constituinte. De caráter liberal, mas impregnado dos valores sociais já presentes nas constituições anteriores, o novo texto constitucional não possibilitou a solução de grandes desafios nacionais, como a questão da função social da propriedade, a reforma agrária e a própria reforma urbana. Os impasses decorrentes do texto de 1946 e do seu desdobramento político e social, e os conflitos que se estabeleceram, levaram à ruptura constitucional de 1964, quando a Constituição, na prática, foi ultrapassada pelos atos institucionais. A Constituição de 1967, feita sob a ditadura, foi elaborada pelo governo federal e aprovada por um Congresso que não tinha poderes constituintes, diminuído pela força nas suas prerrogativas, inclusive com várias de suas lideranças cassadas, muitas na prisão, no exílio, perseguidas. Mesmo essa constituição imposta pelo regime autoritário não prevaleceu, porque no final de 1968 tivemos o Ato Institucional nº 5, o mais ditatorial de todos, suspendendo o habeas corpus, e os direitos e garantias individuais, especialmente para os presos e perseguidos políticos. Logo na seqüência, em agosto de 1969, impedido de assumir o vice-presidente Pedro Aleixo, veio a Emenda Constitucional nº 1, que alguns constitucionalistas consideravam como uma outra constituição, esta sim, visivelmente ditatorial e outorgada.

No final dos anos 1970, começo dos 1980, a democratização chega com a anistia, com o fim do AI-5 e de outros atos. Mas só em 1986 tivemos a convocação de uma Assembléia Constituinte. Infelizmente, não foi uma Constituinte específica, como muitos de nós queríamos. Elegemos um Congresso com poderes constituintes. Entretanto, o processo que se inaugura desde a eleição desses parlamentares, em 1986, e que se desenvolve nos trabalhos da Constituinte, entre 1987 até 5 de outubro de 1988, foi muito importante na história política, social e cultural do Brasil, com muitas manifestações, participação da sociedade em todos os níveis, empresários, trabalhadores, mulheres, jovens, minorias.

A Constituição gerada nesse processo foi batizada por Ulisses Guimarães de "Constituição Cidadã", uma Carta que de fato expressa conquistas avançadas. Ela incorpora uma concepção de um Estado que seja a busca de uma síntese superior de integração e transcendência entre as conquistas do Estado liberal, os direitos e garantias individuais, a afirmação da dignidade da pessoa humana e o compromisso com as liberdades públicas, democráticas. Ao mesmo tempo, incorpora as grandes conquistas do Estado do bem-estar, no que se refere aos direitos dos trabalhadores, dos pobres, das minorias, dos mais fragilizados, apontando também para vigorosas políticas de inclusão, de justiça social, como nós estamos, hoje, implementando no Brasil. Com base na Constituição, desdobraram-se sistemas normativos importantes como o SUS, o SUAS, o Sisan, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Orgânica da Assistência Social, a lei que criou o Bolsa Família, o Estatuto do Idoso.

Nós, que trabalhamos na área do Direito, sabemos que a norma jurídica, uma vez feita, está posta, mas há sempre os espaços cada vez mais ampliados da interpretação, da hermenêutica. Ela deve ser interpretada e aplicada à luz de realidades novas, emergentes, como temos hoje, por exemplo, a questão da informática, e sempre mais agudas as questões sociais e ambientais, na perspectiva dos grandes valores coesionadores da sociedade, como o direito à vida, o bem comum, a função social da propriedade e do lucro, visando um desenvolvimento sustentável, com justiça social e respeito ao meio ambiente.

O que defendemos é a preservação da Constituição, considerando que seu núcleo está vivo, a despeito das muitas emendas, e desejamos que ela seja cada vez mais debatida à luz dos seus grandes princípios. São princípios fundamentais como a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, a participação popular. No artigo terceiro, sobre os objetivos fundamentais, está expresso o desejo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer formas de discriminação.

No fundo, a Constituição de 1988 traz a marca do desenvolvimento integral. O Estado Democrático de Direito, inspirado em grandes teóricos, pensadores de diferentes matizes, se traduz também no desenvolvimento integral das pessoas, das famílias, das comunidades, até chegarmos ao país inteiro, na formulação e implementação, como estamos fazendo, de um grande projeto de afirmação do povo brasileiro.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.