Título: Avaliação de sistemas bancários: brincando com fogo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 06/10/2008, Opinião, p. A18

O conceito de governança nos países desenvolvidos tem convergido para o entendimento de que a atividade empresarial se faz por delegação da sociedade e deve alinhar as formas de fazer negócios às culturas locais, mediante regulamentação e fiscalização dos Estados nacionais. Mesmo na reforma thatcherista, marcada pelo radicalismo liberal inglês e, mais tarde, na condução das medidas de combate ao desemprego durante o período Clinton, nos EUA, o Estado limitou a ação dos capitais privados e endereçou-os para searas sociais, impedindo seu descolamento das causas nacionais.

Julgar desempenhos empresariais obriga a verificação do alinhamento da atuação empresarial com os objetivos da sociedade e de seu funcionamento. Nesse sentido, o ranking promovido pelo Fórum Econômico Mundial, no "Financial Development Report 2008", em Genebra, semanas atrás, esqueceu-se desses novos tempos. Buscou-se aí entender que nações poderiam oferecer ao capital privado melhores condições de remuneração e menores exposições a riscos. Assim, os participantes do fórum produziram um ranking de países para o melhor exercício de seus "espíritos empreendedores", assentados em critérios que se esquecem os princípios da boa governança. Ambiente institucional, ambiente de negócios, estabilidade financeira, bancos, instituições não-bancárias, mercados financeiros e disponibilidade de capital compõem, com seus sub-itens, o elenco dos quesitos avaliados em 52 nações do mundo.

Sem entrar no mérito dos pesos e notas atribuídas a cada país, convém conhecer suas limitações e constatar as idiossincrasias que esse esforço patrocinou. Ao atribuir notas baixas ao Brasil pelo elevado ônus regulatório e fiscal e pelo seu ineficiente ambiente político, o relatório não inovou, nem trouxe fato novo à reflexão. A comemorar restou um honroso primeiro lugar conferido ao BC pela sua capacidade em fiscalizar as instituições financeiras. No referente aos bancos, as piores avaliações foram obtidas em dois fatores: tamanho e eficiência. A melhor diz respeito à abertura de informações, tendo aí encontrado a sexta posição.

É de se lamentar que as funções e as atividades essenciais aos bancos não tenham sido avaliadas, sobretudo as concernentes à vida econômica e social das nações. Aos bancos, essencialmente, cabem as funções de circular as riquezas nacionais e de se constituírem em meio para formação de poupanças. Em um e outro caso, os bancos brasileiros são muito eficientes. Munidos da melhor tecnologia de informação e tendo desenvolvido canais físicos e eletrônicos para a prestação de serviços de pagamentos e recebimentos em todo o país, o sistema bancário brasileiro cumpre a atividade de circulação da riqueza com precisão, rapidez e baixos custos. Por outro lado, os produtos e serviços das áreas internacional, de mercado de capitais e de operações estruturadas garantem a formação da poupança nacional e disponibilizam, nos seus diversos graus de complexidade, formas de investimentos no Brasil e no exterior.

Avaliar bancos pressupõe também o entendimento sobre as necessidades de seus usuários. Para o correntista brasileiro, as pesquisas mostram que a instituição bancária é primariamente o centro em torno do qual o consumidor organiza sua vida financeira, recebendo seus haveres e pagando suas obrigações. É também um centro garantidor da liquidez, fornecendo empréstimos e remunerando seus excedentes de caixa.

Por fim, dois outros elementos devem ser revistos pelos artífices desses rankings. O primeiro é o de imaginar que "tamanho possa ser documento". Bancos grandes também quebram como mostra a história financeira mais recente. Não resta dúvida que bancos são bons negócios. A razão disso é que o banqueiro capta dinheiro de uma pessoa a um determinado custo e empresta para outra a um preço superior. A diferença entre esses valores dever ser capaz de absorver todos os custos da operação e deixar margem ao banqueiro. Em padrão mundial consagrado, a cada 12 unidades monetárias emprestadas, apenas 1 pertence ao próprio banqueiro. As outras 11 unidades são de terceiros. É isso que faz do banco um grande negócio. Ganha-se sobre o dinheiro dos outros e com ele constrói-se o negócio chamado banking. O problema é que se uma unidade monetária emprestada não voltar, tecnicamente o banco estaria quebrado. Trata-se de operação de risco que precisa ser, como no caso brasileiro, conservadoramente administrada, rigorosamente fiscalizada e claramente apresentada ao público. Ser grande realmente "não é documento". Documento é ser financeiramente saudável, com uma apropriada relação capital próprio x capital de terceiros. É administrar com competência o crédito concedido, dando conta à sociedade da real situação econômica e dos riscos a que sua operação está exposta. Nesse sentido, o sistema bancário americano é um verdadeiro desastre. O maior destruidor de valor de todos os tempos. Causa espanto ver o despropósito da operação bancária americana, empacotando e distribuindo dívidas sem o menor controle dos volumes e da qualidade da operação de crédito. Dizer que esses bancos fazem o melhor sistema bancário do mundo é desafiar o bom senso. Sem condições mínimas de liquidez, só não assistiu à inviabilização de seu mercado interbancário graças às prontas e decisivas ações do Federal Reserve e do Tesouro americano, que se obrigaram a injetar fortunas para garantir a liquidez desses sistemas e permitir condições mínimas à circulação da riqueza naquele país.

O segundo quesito, concernente à formação da poupança nacional, deveria colocar países como o Brasil em melhor lugar nessa lista. A poupança dos mercados desenvolvidos foi destruída pelos seus sistemas bancários. Quanto valem esse bancos hoje? Quantos conseguirão resistir a suas próprias gestões? Melhor será perguntar aos congressistas americanos e a seus dois grandes partidos políticos.

É oportuno repensarmos esses critérios que negam os bons princípios da governança. É o momento de rever as análises que consagram sistemas bancários falidos e suas aventuras financeiras em torno do mundo, em vez de aplaudir seus desvarios e seus descontroles.

Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi é diretor do Instituto Fractal de Pesquisa de Mercado e professor da FEA/USP.