Título: Índia sofre, mas vê a crise com cauteloso otimismo
Autor: Leo, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 08/10/2008, Especial, p. A18

No bairro de Dakshinpuri, em Nova Déli, a capital da Índia, próximo a uma vala por onde passa esgoto a céu aberto, o comerciante Subhash Aggarval, de 44 anos, reclama da inflação, por trás do balcão da minúscula mercearia onde vende alimentos de marcas populares, cereais e bolos caseiros. Ele calcula que seus preços aumentaram cinco vezes nos últimos dois anos, o que afastou a clientela e o obriga a trabalhar das seis da manhã às dez da noite. Vizinhos fecharam lojas e seus filhos, Deepak e Sanjay, preferiram deixar o negócio, aproveitar os estudos e empregar-se como técnicos na exuberante indústria de tecnologia indiana. Sergio Leo/Valor Econômico O comerciante Subhash Aggarval em sua pequena mercearia, em Nova Déli

Perto da venda de Aggarval, crianças e adolescentes disputam aos empurrões cinco computadores embutidos em uma parede, com teclados reforçados e acesso livre. Aggarval ajuda a vigiar os equipamentos, parte de um programa de inclusão digital bancado por uma empresa de tecnologia em educação, a NIIT, e pelo IFC, um dos braços do Banco Mundial. Sem conexão à internet devido a abusos no passado, os computadores têm manutenção permanente e programas didáticos usados pelas crianças para os deveres da escola. Têm também um sistema de alimentação de energia para protegê-los dos freqüentes apagões na região.

O programa, Hole in the Wall (literalmente, Buraco na Parede) mostrou ao país que crianças de comunidades carentes aprendem rapidamente a usar a informática para fins educativos, sem a necessidade de instrutores, apenas por tentativa e erro.

As queixas de Aggarval e as promessas trazidas com os vizinhos computadores embutidos na parede compõem o clichê tradicionalmente associado à Índia: pobreza, inflação, carência de infra-estrutura e, apesar de tudo, emergência de uma potência tecnológica, com mão-de-obra barata e qualificada. A crise financeira atual acrescentou preocupações a esse cenário, mas ela é encarada pelos indianos com um cauteloso otimismo.

É grande o contraste entre o noticiário econômico e a calma nos gabinetes do governo e dos centros de pesquisa na Índia. As notícias são ruins: ontem, apesar da pequena recuperação nos mercados asiáticos, o Sensex, índice da Bolsa de Valores da Índia, entrou pelo segundo dia seguido em ligeira queda, trazendo o indicador para seu nível mais baixo dos últimos dois anos.

O dólar valorizou-se, e os sinais de redução do dinheiro disponível nos bancos fizeram os economistas temerem uma crise de liqüidez e obrigaram o banco central indiano, na segunda-feira, a cortar os depósitos compulsórios exigidos dos bancos e afrouxar restrições para captação de recursos externos. A crise fez economistas reverem expectativas para o desempenho da economia, que, no entanto, ainda deve crescer invejáveis 7,5% neste ano e no próximo.

"A Índia está bem mais protegida do que, por exemplo, estava a Coréia do Sul em 1997, por todo tipo de razões, razões erradas", comenta com ironia o diretor-geral do Conselho Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada, Suman Bery, ex-economista-chefe do Banco Mundial para o Brasil e um dos mais ativos participantes do debate econômico indiano. A Índia abrigou-se das turbulências mundiais por ter adotado, no passado, medidas como o rígido controle na entrada de capital estrangeiro e a forte presença estatal no sistema bancários, que, segundo ele, são "horríveis", por comprometerem a eficiência da economia no longo prazo.

Como outros economistas indianos, Bery crê que será desprezível o efeito direto da crise mundial sobre o sistema financeiro do país, embora sejam "mais substanciais" os efeitos indiretos sobre a economia, como a redução na demanda do sistema bancário mundial por serviços terceirizados fornecidos por companhias indianas.

Antes do agravamento da crise, nesta semana, a Nasscom, associação local de indústrias de tecnologia da informação, havia reduzido para até 21% a previsão de crescimento do setor neste ano fiscal (que, na Índia, começa em abril). No último ano fiscal, terminado em março, o setor aumentou as exportações de serviços em 29%, para quase US$ 40 bilhões. É grande a expectativa dos indianos com o anúncio, na próxima semana, dos resultados quadrimestrais da Infosys, uma das gigantes do setor. Será um sinal do que está acontecendo com o desempenho no comércio de serviços, responsável por dois terços do crescimento do Produto Interno Bruto do país.

A redução no ritmo da economia já era esperada pelos indianos, mas por motivos descolados da crise mundial. "Nossa exposição aos mercados internacionais é relativamente pequena", garante o estatístico-chefe da Índia, Pronab Sen, para quem o grande aumento nos investimentos desde 2004 deve criar um grande aumento na oferta de produtos a partir do ano que vem.

Crescendo a taxas próximas a 9% desde 2005, a Índia reduziu em quase 15 pontos percentuais neste ano o crescimento na taxa de investimentos, que ainda está, porém, em 35% do PIB; a dívida pública, embora em ligeira queda, supera os 70% do PIB. O saldo negativo nas contas do governo federal e dos estados deve subir neste ano de 5,8% do PIB para 8,6%, segundo o Conselho de Pesquisas em Relações Econômicas Internacionais (ICRIER).

O déficit comercial é alto, de quase US$ 90 bilhões (e pode passar de US$ 130 bilhões neste ano), mas porque as importações crescem a taxas de 50%, enquanto as exportações aumentam em 25%. Apenas 16% das vendas externas se destinam aos EUA. "Até agora não houve redução no ritmo das exportações", garante o secretário-adjunto do ministério de Comércio Anil Mukin.

Ao mesmo tempo, a Índia continua sendo um dos principais receptores de investimento estrangeiro direto, e seu crescimento se deve, principalmente à demanda interna.

"Mesmo com a queda, a taxa de investimento ainda cresce cerca de 9%, e nossas reservas, de US$ 310 bilhões, permitem à economia suportar a saída de capital", analisa o consultor Mathew Joseph, do ICRIER. Há fortes pressões inflacionárias, desencadeadas pelo aumento do preço do petróleo, usado fartamente na geração de energia elétrica. Nesse cenário, a desaceleração da economia mundial, com queda nas taxas de juros e no preço do petróleo, e a redução do aperto monetário também no mercado indiano são considerados fatores positivos.

"Nosso maior problema hoje é na infra-estrutura, em portos, estradas e hidreletricidade, e o que prejudica os investimentos são as contestações judiciais à desapropriação de terras e a falta de bens de capital, máquinas e equipamentos", comenta o estatístico-chefe Pronab Sen.

"No fim das contas, daqui a um ano ou 18 meses possivelmente ficará demonstrado que o destino indiano é determinado mais pela política doméstica que pelos acontecimentos globais, em comparação com a maioria dos mercados emergentes", concorda Suman Bery. "Se tivermos uma recessão, será devido a dificuldades domésticas ligadas à inflação, à dívida e à falta de flexibilidade em nossa política fiscal. O grau de ajustamento não é tão grande que nos exija uma recessão massiva de transição".