Título: Anuência prévia de patentes e a Anvisa
Autor: Luis Carlos Wanderley Lima
Fonte: Valor Econômico, 23/02/2005, Legislação & Tributos, p. E2

A imprensa tem se constituído com freqüência em palco para a demonstração do desagrado de pessoas físicas e jurídicas quanto à participação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no processo que examina a concessão de patentes de medicamentos no país. Muitas imprecisões legais e conceituais, quando não desinformação mesmo, têm sido veiculadas sobre o assunto. Por este motivo, talvez valha a pena esclarecer algumas das atribuições legais e dos aspectos da atuação da agência de vigilância. A criação da Anvisa pelo Ministério da Saúde no ano de 1999 levou à adoção de diversas medidas para reorientar a vigilância de medicamentos, entre as quais o Programa Nacional de Medicamentos Genéricos, a articulação das ações de vigilância às ações da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, o monitoramento dos preços no mercado farmacêutico e a associação ao trabalho do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) da expertise da área da saúde no exame dos pedidos de patentes de fármacos. O legislador, ao incluir na Lei nº 9.279/96 o artigo 229c - que instituiu a participação da Anvisa na concessão de patentes de produtos e processos farmacêuticos -, entendeu que matéria de tal importância mereceria o exame mais cuidadoso e tecnicamente competente possível que o Estado brasileiro pudesse dispor. Medicamentos, como se sabe, não são produtos supérfluos, que podem ter o consumo adiado, ser escolhidos pelo preço ou com os quais se possa economizar em qualidade e quantidade. Não era por outro motivo que a legislação brasileira e a da maior parte dos países não autorizava sua patenteabilidade, mantendo-os fora do alcance da proteção monopolística. A proibição de conceder patentes para insumos vitais à sobrevivência da espécie humana vigorou no mundo até que pressões políticas, econômicas e comerciais obrigaram os países a criar legislações de proteção à propriedade intelectual. O próprio acordo TRIPS, assinado em 1994 e pedra de toque para a aprovação da Lei nº 9.279/96 - a atual Lei de Propriedade Industrial brasileira -, admite que cada país tem liberdade para proteger a atividade intelectual por meio de legislação local, assim como de estruturar a administração pública, como melhor lhe aprouver, para essa tarefa. A Anvisa, como responsável pela segurança sanitária e pela garantia da qualidade dos medicamentos no país, era o órgão adequado para, junto com o INPI, avaliar os critérios de patenteabilidade de um pedido de invenção de um fármaco. Não há nisso nenhuma ilegalidade, nenhum descumprimento de compromissos assumidos pelo país ou vício de qualquer calibre.

O legislador entendeu que a matéria merecia o exame mais cuidadoso e competente possível que o Estado pudesse dispor

Portanto, o papel da agência na anuência prévia não é o de interferência nas patentes ou pretexto para suprir suposta deficiência do INPI. A obrigatoriedade de sua participação foi uma determinação legal recebida do Congresso Nacional, ao entender a importância de tal instituto para a política nacional de assistência farmacêutica. Apesar da relevância desse tema para a saúde da população e da soberania nacional para cuidar de assuntos internos, diversos escritórios de advocacia especializados em patentes, associações nacionais representativas dos interesses dos detentores de patentes e algumas representações diplomáticas de países na defesa dos pleitos comerciais de suas empresas têm criticado a participação da Anvisa nas questões relativas à proteção da propriedade intelectual. Essas críticas são feitas menos por restrições à competência técnica do órgão do que por alegações de suposta ilegalidade ou inconstitucionalidade da medida que introduziu a participação da Anvisa no processo, argumentos estes amplamente desmentidos pela Constituição Federal, que garante a função social da propriedade e determina que a concessão de patentes deva estar subordinada à conveniência da mesma ao desenvolvimento econômico e tecnológico do país. Portanto, diante disso é possível vislumbrar-se a intenção do legislador ao agregar a Anvisa ao processo de concessão de patentes no Brasil. Talvez o que seja obscuro sejam os interesses que estão por trás das tentativas sistemáticas de afastá-la do processo decisório quando se sabe que este processo terá conseqüências diretas e dramáticas no acesso da população ao medicamento. O que tem a ver a Anvisa com as patentes? Onde é que a saúde é contemplada? São perguntas lançadas inocentemente com muita freqüência. A resposta parece estar na idéia de que compete ao governo (seja ele o INPI, a Anvisa etc.) e à sociedade como um todo proteger o elo mais fraco nessa disputa comercial: os pacientes. E uma medida simples para dar conseqüência a essa proteção é a de se evitar que seja concedida uma patente imerecida (o que pode ocorrer, tantas são as regras do atual sistema de propriedade intelectual e suas interpretações). Como a possibilidade de tratamento das enfermidades se dá, em grande parte, por intermédio do uso de medicamentos, qualquer tipo de barreira entre ele e os pacientes significa uma restrição ao seu acesso. E isso - como a epidemia de Aids claramente já comprovou - é uma questão, sim, de saúde pública.