Título: Mulher se explode e mata 46 xiitas
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 02/02/2010, Mundo, p. 20

Extremista suicida ataca durante ritual em Bagdá. Analista culpa proximidade das eleições

Uma vez por ano, centenas de milhares de xiitas partem de Bagdá e caminham, rumo a sudoeste, até a cidade de Kerbala. Durante o percurso de 80km, os peregrinos batem em suas próprias cabeças e no peito, em um ritual religioso conhecido como Arbaeen (1). Por volta das 11h45 (6h45 em Brasília), uma iraquiana vestida com a abaya ¿ uma peça de roupa comprida e negra ¿ entrou em uma tenda cabine de revista corporal exclusiva para mulheres e se explodiu. Pelo menos 46 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas. Testemunhas contaram à agência Associated Press terem visto pessoas ¿chorando por ajuda¿, enquanto aguardavam socorro deitadas no chão, em uma das ruas do bairro de Bub Al-Cham, na região nordeste da capital iraquiana. Segundo o Comando de Operações de Bagdá, entre os mortos estão três voluntárias que ajudavam na checagem dos peregrinos.

A 6km dali, no distrito de Harethya, o comerciante libanês naturalizado brasileiro Michel Maalouli, 48 anos, retomava a rotina após voltar de uma viagem a São Paulo, no domingo passado. Pela internet, ele contou ter escutado o barulho da explosão ao longe. Os detalhes do que havia ocorrido só chegaram por meio de funcionários iraquianos. ¿Soube que o atentado se deu em uma entrada de Bagdá, mais ao norte¿, afirmou ao Correio. Para Michel, o som da morte tornou-se rotineiro e já não o incomoda tanto. ¿Explosões como essa acabam sendo algo normal, pois acontecem quase que diariamente aqui em Bagdá¿, admitiu. Funcionário de uma empresa norte-americana, ele não teme ser alvo. ¿Nossa área é 100% segura. Quando há algum problema, usamos coletes e permanecemos nos abrigos¿, acrescentou.

O engenheiro Bassim Al-Fa¿oury, 29 anos, entrou em contato com amigos de Kerbala, em busca de detalhes da explosão. ¿Eles me disseram que a extremista suicida havia afirmado que o marido fora assassinado em uma guerra sectária, e que ela tentava vingar a morte¿, revelou ao Correio, pela internet. Até o fechamento desta edição, as autoridades iraquianas não tinham divulgado as motivações do ataque. Mas Al-Fa¿oury tem um palpite. ¿O atentado contou com o auxílio de falhas na segurança. Os extremistas são recrutados de forma que não precisem de ajuda no local do ataque. Creio ter sido uma ação de círculos políticos com interesses eleitoreiros.¿

Insegurança A versão é compartilhada por especialistas. Consultado pela reportagem, Alon Ben-Meir, professor de relações internacionais da New York University, culpa o Partido Islâmico Nacional Iraquiano. ¿Formada por extremistas sunitas, essa facção recebe a ajuda da rede terrorista Al-Qaeda e de elementos estrangeiros, que procuram manter a tensão com os xiitas em um nível muito forte¿, explica. Segundo ele, os extremistas pretendem causar distúrbios antes de 7 de março, quando o país realiza eleições gerais. Por sua vez, o fim do feriado religioso de Ashura é ¿uma oportunidade para os extremistas sunitas capitalizarem seus esforços para matarem o maior número de xiitas¿. O uso de mulheres potencializa a chance de sucesso da explosão. ¿A polícia não as revista, e a insurgência sabe que uma mulher pode penetrar na multidão sem ser detectada¿, lembra Ben-Meir.

O especialista iraquiano da New York University destaca a ineficiência das forças de segurança de Bagdá, incapazes de checar cada ponto de Bagdá. ¿Seis milhões de peregrinos fazem a procissão de Arbaeen e é impossível monitorar cada um. Além disso, se não temos policiais mulheres, quem vai fazer revista nas muçulmanas?¿, questiona. De acordo com Ben-Meir, para cada 100 extremistas suicidas do sexo masculino, provavelmente há apenas uma mulher.

O analista propõe que o leitor do Correio observe o atentado de ontem a partir de uma perspectiva mais geral. ¿Existe no Iraque um sentimento muito forte dos xiitas em relação aos sunitas. Os dois povos não conseguiram concordar com as modalidades para as eleições¿, observa. Por quase 24 anos, o ex-ditador sunita Saddam Hussein (2) impôs mão de ferro sobre o país, deixando os xiitas em situação vulnerável. Ben-Meir teme o futuro desse relacionamento instável. ¿Minha preocupação é sobre o que ocorrerá quando as tropas dos Estados Unidos abandonarem o Iraque.¿

1 - Luto histórico Feriado de observação religiosa que ocorre 40 dias depois do Dia da Ashura ¿ a celebração ao martírio de Hussein bin Ali, o neto do profeta Maomé. Hussein e seus 72 simpatizantes morreram na Batalha de Kerbala, um combate travado com as forças do califa Yazid I, da dinastia Omíada, no ano 680. O episódio marcou um momento decisivo no racha entre xiitas e sunitas. Hussein foi assassinado, na tentativa de evitar que ele desafiasse o califado.

2 - Erros na perseguição As consequências dos ¿erros¿ cometidos em 2003 durante a perseguição aos aliados de Saddam Husein são agora sentidas no Iraque, enquanto se aproximam as eleições, admitiu o embaixador dos Estados Unidos em Bagdá, Christopher Hill. ¿Acho que não há ninguém capaz de afirmar que não foram cometidos erros no início do processo de exclusão de dezenas de milhares de funcionários do Partido Baath¿, admitiu. Os partidários do ex-ditador foram proibidos de voltar à política e a à vida pública após a invasão anglo-americana. ¿Sabíamos que a `desbaathificação¿ representaria um problema. O processo suscitou comoção entre os iraquianos e muita preocupação¿, acrescentou.

O número 103.819 - Total de civis mortos no Iraque desde o início da ocupação, em 2003. Os números são do site Iraq Body Count e se aproximam das cifras do governo iraquiano.

Eu acho...

¿Na verdade, o conflicto sectário no Iraque nunca terminou. Ele apenas reduziu de intensidade. As tensões entre xiitas e sunitas permanecem bem fortes. Qualquer ocasião ou oportunidade para instigar essa tensão, será usada dos dois lados. Um fator importante para explicar o atentado de hoje (ontem) é a proximidade da eleição, que ocorre em março¿ Alon Ben-Meir, iraquiano, professor de relações internacionais da New York University

¿Explosões como essa acabam sendo algo normal. Isso acontece quase que diariamente aqui em Bagdá. O chato é saber das mortes de pessoas inocentes. Escutei o barulho do atentado. Pelo que eu soube, a bomba atingiu as peregrinações rumo a Kerbala. A explosão foi provocada por uma mulher, que usava um cinturão-bomba¿ Michel Maalouli, 48 anos, comerciante libanês naturalizado brasileiro, morador de Bagdá

¿Esses atentados são um preço a pagar pela liberdade. Eles continuarão até que o último norte-americano deixe o Iraque. A responsável por toda a violência é a ocupação. É do interesse dos Estados Unidos a existência de muitos alvos além de suas tropas. É algo sem lógica, mas trata-se de uma guerra perpetrada pelos EUA¿ Issam Al-Ghazzawi, advogado jordaniano que defendeu o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein